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O marketing bom caráter

Marketing tem futuro? A resposta curta é: não. Não a idéia de marketing que temos hoje. No futuro, fazer marketing será sinônimo de construir reputação, algo que não poderá ficar restrito apenas a um setor da empresa, e que nada terá a ver com “criatividade” ou propaganda.

Dependerá do que você faz, não do que você diz. Ou seja: dependerá do seu caráter. Marketing será cada vez mais desafiador, mas o departamento de marketing vai acabar, e vai levar os marqueteiros junto. Eles serão necessários apenas para coisas triviais (como campanhas eleitorais, por exemplo), o resto dependerá de abordagens mais complexas. Isso vai acontecer porque a empresa está mudando em resposta a um cliente que já mudou, mudará mais, e fará a empresa mudar mais ainda. Calma. Vamos ver isso direitinho.

O revolucionário do digital é o seguinte: comunicação precisa, barata e abundante força a reconfiguração dos processos tradicionais das empresas. Deixaremos de fazer coisas que sempre fizemos e passaremos a fazer outras que não fazíamos. Ninguém mais duvida disso. Não é bola de cristal, é teoria econômica – algo que precede marketing.

A maneira mais eficiente de organizar uma empresa tem sido agrupar sob uma administração comum todas as atividades necessárias à produção daquilo que se tem para vender. Isso faz sentido quando reduz os chamados “custos de transação” – os custos associados a obter insumos, achar fornecedores, negociar acordos, promover o produto, vender, entregar… Coordenar tantas “comunicações” exige gerência centralizada. Empresas existem para isso. Henry Ford usava esse conceito intuitivamente. A Ford Motor Company do início do século produzia todas as partes do modelo T, fazia a montagem, fabricava seu próprio aço, vidro e pneus. Tinha seringais na Amazônia, era dona da estrada de ferro que trazia matéria prima e levava os carros prontos. Quando uma tecnologia nova atua como redutora de custos de comunicação, a empresa, mais cedo ou mais tarde, é forçada a incorporá-la. A Ford acabou tendo de adotar uma inovação dessas: management. A fúria centralizadora da empresa ultrapassou o limite, tornou-a ingerenciável e levou-a ao desastre nos anos 20. Internet, e-mail, etc, praticamente eliminam os custos da comunicação hoje, e isso sugere que, agora, a forma mais produtiva de uma empresa se organizar será desintegrando-se. Subcontratando coisas (processos, funções) que tinha de ter sob seu controle. É isso que já estamos vendo. Terceiriza-se tudo: da gerência de sistemas de informação à fabricação. De processamento de dados a recursos humanos de alta qualificação. Parte da motivação para isso vem da natureza da economia hoje: como o conhecimento necessário ao desempenho de qualquer atividade relevante tornou-se altamente especializado, é cada vez mais dispendioso e difícil manter sob controle da empresa uma massa crítica de gente para cada tarefa essencial. Como o conhecimento se deteriora rapidamente, manter gente contratada sem reciclagem constante gera ineficiência. Porém, reciclar continuamente pode ficar muito caro. Eis aí uma oportunidade de mercado. A EXULT – empresa americana fundada em 1998, que vem crescendo explosivamente – dedica-se à gestão de RH para algumas das 500 maiores da Fortune. Não é só folha de pagamento, pessoal de limpeza, ou relações trabalhistas – é terceirização de talento humano mesmo. Alguém imaginava que isso seria possível um dia? Processos novos ficam viáveis e as empresas adotam porque ganham vantagens em custos. A informação digital desconstrói a empresa. Essa é a tendência geral. Não vou dizer que será corriqueiro em dois ou dez anos. Não sei. Mas que vem, vem, e isso afeta o marketing decisivamente, como veremos.

Fazer marketing é “fazer o mercado aceitar” algo. Isto é, é obter um efeito macro, originado em decisões individuais (micro) de milhares, milhões, de indivíduos. “O candidato tal foi eleito”, “o market-share aumentou”, “as vendas subiram”, etc. Para induzir/estimular esses efeitos “macro”, você manipula o mercado. Sempre foi assim. O que mudou foi o indivíduo – o bloco básico a partir do qual mercados são construídos. Antigamente, para se obter os efeitos que queríamos, agregávamos os consumidores em grandes blocos de perfis disso e daquilo (demográficos/renda/estilos de vida). Se alguém estava num certo bloco, automaticamente iria se comportar segundo um padrão típico. Era simples. Desenhávamos uma “comunicação” direcionada a cada padrão, e pronto. Fazer isso com competência continua crucialmente importante, só que cada vez determina menos o sucesso, porque há um repertório cada vez maior de possibilidades a considerar. Marketing, no sentido tradicional, só faz sentido enquanto os mercados são, bem… são manipuláveis, certo? Isto é, enquanto são previsíveis. Enquadrados. Estáticos. Desinformados. No passado havia, digamos, um “consumidor genérico”, uma espécie de “Zé Mané geral”. Hoje não há mais. A revolução da informação está desconstruindo o “Zé Mané geral”. Mercados hoje são constituídos por milhões de Zé Manés, agindo, cada um da sua maneira, querendo as coisas a seu modo, fazendo suas opções individuais.

As técnicas vigentes de marketing são (todas) originadas no pressuposto de que estamos lidando com entidades homogêneas, mas isso não é mais verdade, em geral. O que era sólido não está desmanchando no ar, mas sim, fragmentando-se em pedaços, reconfigurando-se e reconectando-se em arranjos novos. O mercado de massas – homogêneo e portanto simples, por definição – está sendo desconstruído. Não há mais nada “simples”.

A noção de que há um mercado lá fora, com necessidades e desejos específicos, esperando para serem “descobertos”, não se sustenta mais. Necessidades e desejos são moldados pela interação contínua de quem oferece algo com quem recebe esse algo. Não existem mais a priori.

Considere uma ferramenta típica do marketing de ontem: pesquisa para previsão de mercado. Impossível hoje. Em praticamente todas as circunstâncias de interesse em marketing, elas só prevêem o óbvio. O não-óbvio, que é o que faz diferença, fica escondido e depende de insight criativo.

Uma das raras circunstâncias em que previsões de mercado acertam é em campanhas eleitorais. Por quê? Porque processos eleitorais são simples. São formatados para que seja viável implementá-los operacionalmente. São reguladíssimos. Há até um tribunal atuando praticamente em tempo real para punir desvios do que é permitido. É curioso que a melhor maneira que a sociedade descobriu para escolher quem manda nela, tenha de ser tão amarrada, tão presa. Os candidatos competem por um instante na vida de quem os escolhe – aquele momento em que registrarão seu voto. É simples. É isso que deixa os candidatos cada vez mais dependentes da forma como a coisa é apresentada ao grande público, principalmente nos dias finais da campanha, e é aí que os marqueeteiros se dão bem. Pesquisas nessa área têm um repertório muito limitado de nuances a considerar: “entre os candidatos x, y e z quem o senhor escolhe?”. As opções são: escolho alguém, não escolho ninguém, ou não sei. Isso cobre todas as possibilidades. É simples.

Na prática, o que ocorre? Tanto os candidatos mudam as ênfases de seus discursos ao longo da campanha, reagindo a informações sobre preferências dos eleitores (pesquisas), como os eleitores também vão mudando, reagindo às mudanças nas mensagens dos candidatos, que já tinham mudado de discurso por causa desses eleitores, etc. Por isso, à medida que o dia da eleição se aproxima, cada rodada de pesquisas faz profecias cada vez mais auto-realizáveis sobre quem será eleito. No dia D, no segundo turno, o que se prevê (quase) sempre acontece. Não tem mistério. O mercado é simples. Pesquisas de mercado só dão informação confiável, em situações simples o suficiente para poderem ser previstas por pesquisas de mercado. Nem em eleições dá para sustentar o mito de que há pessoas com convicções inabaláveis, escolhendo o candidato que mais se aproxima delas. No tempo do mundo preto e branco, havia. Quando havia esquerda e direita, havia. Quando havia comunismo versus capitalismo, havia. Não sei por que continuamos estudando marketing como se houvessem mercados passivos esperando para serem desvendados.

O que acontece quando empresas e mercados fragmentam-se? A empresa vira um feixe de relacionamentos, e seu sucesso é determinado pela qualidade das relações que estabelece. Com clientes, fornecedores, com funcionários, com a sociedade. Reputação é que vai decidir. As empresas terão de cuidar disso porque a única maneira de conquistar clientes vai ser via reputação. Em vez de dizer “compre de mim”, teremos de gerar a percepção de que “sou confiável”. Isso não se consegue falando, só agindo consistentemente. O fundamento do marketing na era digital vai ser centrado nesse único atributo. As ineficiências e inadequações da empresa serão expostas implacavelmente, não haverá mais nada que possa ser escondido e só haverá uma forma de se lidar com isso: transparência. Marca será eternamente relevante em marketing, pois reduz custos de comunicação – elimina a necessidade de se obter informação antes de comprar. A marca contém toda a informação. Só que agora, marca não será função do que você gasta na mídia, mas do que eu posso verificar de você, e eu posso verificar tudo. As empresas estarão tendo suas reputações auditadas permanentemente pelos clientes, pela sociedade. Culpa do digital.

Reputação, aliás, sempre contou muito para o animal humano. A civilização só se instaurou graças à construção de relações baseadas em reputação. Recue no tempo e imagine o que pode ter ocorrido quando alguns caçadores, ancestrais nossos, perceberam que, juntos, podiam abater e transportar javalis maiores do que conseguiriam sozinhos. Cooperando, levariam mais carne para suas famílias. Aqueles que não colaboravam e só apareciam na hora da partilha, acabavam marginalizados (parasitas! aproveitadores!). Antropólogos nos ensinam que os arranjos sociais que significaram avanços, sempre tiveram na reciprocidade (originada na reputação de confiabilidade) um elemento central. As comunidades que foram hábeis na construção de redes de relacionamentos baseados em reputação desenvolveram-se, as outras não. Exemplos: o norte da Itália, onde reputação se tornou essencial por causa de relações de comércio. No sul, não tão desenvolvido, não se formaram os mesmos vínculos. Partes mais desenvolvidas do sul do Brasil – com suas cooperativas de colonos imigrantes – construíram regras de comportamento comunitário baseadas em reputação. Norte e nordeste brasileiros não conheceram esse tipo de capital social. Há muitos exemplos.

É curioso e até engraçado: a tecnologia digital, a mais potente e sofisticada de todas as tecnologias, pode não estar nos levando a um futuro assim tão “futurista” como tantos (inclusive eu) têm especulado. Ela pode estar nos guiando, isto sim, de volta a tempos ancestrais. Àquilo que foi essencial para nos definir como humanos há milhares e milhares de anos – à primazia da reputação como forjadora dos vínculos que tornam possível o convívio social. Vínculos cuja base é trust, não truque. Um processo construído a partir dos fundamentos do que significa ser humano.

Se você quiser dar um nome ao marketing da era digital, pode chamá-lo de antropomarketing.

REFERÊNCIAS

1. Supermentes

– Clemente Nobrega, editora Negócio, 2001.

2. Real time Marketing

3. The Real Time Economy

4. Theyre not employees, theyre people

– Peter Drucker, Harvard Business Review, 02/2002. – Survey na revista The Economist – 02/2002. – Regis McKenna, Harvard Business Review, 08/1995.
*Artigo publicado na Revista Exame de 05/2002.

Antropomarketing?

Mercados desconstruídos – o que será do marketing?

A empresa desconstruída – marketing vem só depois.

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