A natureza da mudança que tem de acontecer em saúde
A nova arquitetura da saúde terá de incorporar iniciativas que levem à mudança de comportamento não só de quem fornece, mas também de quem consome assistência. Nenhum agente do ecossistema da saúde atual tem condições de bancar sozinho as transformações que são necessárias.
Tentativas para dar mais poder ao usuário, por exemplo, tornando-o gestor de sua própria saúde (como faz com seu dinheiro) têm dado errado. O “Google Health”, uma ferramenta lançada pelo Google com esta finalidade, fracassou e foi retirado do mercado.O Google- empresa que é sinônimo de inovação- cuja missão é “organizar a informação do mundo e torna-la acessível e útil”, não conseguiu nada em saúde. Motivo? Desinteresse do usuário e de outros agentes.
Na última década, vários scholars fizeram propostas para uma nova arquitetura da saúde, dentre eles Michael Porter, Clayton Christensen, e Regina Hertzlinger da Universidade de Harvard.
Porter recomenda um tipo de transformação que ocorreria por iniciativa dos prestadores de serviço atuais. Isso não é possível no Brasil porque os modelos de prestação de serviços terão de ter lógicas diferentes (e opostas) das lógicas dos modelos existentes, e não faz sentido esperar que um prestador vá atacar a si mesmo. Os esforços para mudar o sistema de pagamentos que estão surgindo dentro da arquitetura atual, não vão dar certo, por isso.
Christensen propõe a integração da prestação dos serviços em organizações que lucrem com a saúde, não sendo remuneradas por volume de atendimento (fee for service), mas por seu sucesso em manter a saúde das populações que atende. Essas organizações seriam donas de seus hospitais e serviços, e seus médicos e outros profissionais seriam seus contratados (não credenciados). Receberiam uma quantia fixa por usuário e garantiriam toda a assistência de que necessitassem. Funcionariam como seguradoras e prestadoras de serviços assistenciais ao mesmo tempo. Teriam todo interesse em introduzir programas de manutenção de saúde, prevenção, acompanhamento de grupos de risco, porque quanto menos o cliente usasse o sistema, mais lucro a organização teria.
A referência de Christensen é a americana Kaiser Permanente- uma empresa singular, que é um grande case de sucesso nos EUA, mas que não consegue replicar sua fórmula de sucesso fora da Califórnia. Christensen sugere que são os grandes empregadores privados- as empresas que mais gastam com a saúde de seus funcionários- que devem se unir para criar organizações de saúde segundo um modelo do tipo Kaiser Permanente. É do interesse dessas empresas fazê-lo, e só elas teriam musculatura suficiente para uma empreitada dessas. Interessante, mas impossível no Brasil, por várias razões. Uma delas é o volume de investimento que teria de ser feito para criar um ecossistema assim do zero. Nem com financiamento do BNDES daria, e não haveria empresas interessadas dado o nível de risco vis a vis a perspectiva de retorno.
A ciência da complexidade rejeita grandes designs implementados a partir de um plano mestre. Ela propõe experimentos transformadores, projetos-piloto que começam pequeno e, quando bem sucedidos, adquirem uma dinâmica própria, crescendo e absorvendo o sistema existente. É o que acontece em sistemas complexos em geral, e pode acontecer em saúde também.
Regina Herzlinger enfatiza o que chama de fábricas focadas (focused factories) em saúde- os prestadores de serviço devem se especializar em condições médicas específicas (ou grupos de desordens e condições médicas que se manifestem simultaneamente)- diabetes, asma, insuficiência cardíaca… E focar nessas condições. Seus processos de prestação de serviços devem ser redesenhados a partir da criação de equipes multidisciplinares que trabalhariam em times para resolver as demandas de usuários portadores dessas desordens. Focar em condições específicas de saúde reduz custo e aumenta a qualidade.
Isso é verdade, mas como no caso da proposta de Porter, não é realista esperar essa transformação a partir das empresas do ecossistema existente no Brasil. Elas não vão atacar a si mesmas. Não teriam nem dinheiro nem motivação para investimentos deste porte porque não conseguiriam vislumbrar retorno adequado. Organizar o trabalho assistencial em função de times de especialistas implica mudar salários, critérios de pagamento de operadoras, escalas de plantões de profissionais, layouts físicos.
As organizações e processos que constituem o ecossistema atual são interdependentes (odeiam-se , mas são interdependentes).Teremos de mexer na arquitetura do ecossistema todo para que alguma coisa mude sustentavelmente. A conclusão é que o ecossistema atual- na forma em que está estabelecido- impede inovações locais nas organizações que o compõe.
Os três professores de Harvard fazem boas propostas. Seu problema é que, por ignorarem a natureza dos sistemas complexos, sugerem uma grande reconstrução que resolveria as coisas a partir de uma espécie de retrofit do sistema atual (para usar um termo da engenharia). Mas sistemas complexos só se constroem evolucionariamente, por aprendizado incremental, não por intervenções de cima para baixo.
Uma citação de Kevin Kelly – um especialista nesses temas- ilustra este ponto:
“Ecologias e organismos não surgem by design- eles vão ficando prontos aos poucos. Tem que ser incremental. Nada acontece em um glorioso ato de criação. Mesmo que tivéssemos um blue print completo da nossa rede de telefonia, por exemplo, não conseguiríamos construir outra tão grande e confiável sem recapitular a forma de crescimento da rede anterior, partindo de muitas redes pequenas que funcionaram e foram se interligando numa rede planetária”.
A versão atual do Windows (e do MacOs) foi construída em cima da anterior, que foi construída em cima da anterior, etc.. Você constrói algo novo em cima de um “algo” menos complexo que já funcionava. Em saúde não existe este módulo mais simples que funcione, então teremos de começar propondo um.
Nada substitui um sistema complexo num salto. Tudo acontece por meio de módulos que vão se complexificando em paralelo, ganhando massa crítica, ligando-se ao sistema existente a partir de suas periferias e corroendo-o gradualmente de fora para dentro- como ocorreu com a fotografia digital, com o telefone celular, como está ocorrendo com o ensino à distância, com vários sistemas de prestação de serviços, com o comércio eletrônico, com os sistemas de pagamento via blockchain. Todas essas coisas vão se aproximando da massa crítica aos poucos, imperceptivelmente e, “de repente”, saltam. O ecossistema substituto na saúde não surgirá num ato instantâneo – virá se formado em paralelo.
Tentativas de transformar sistemas disfuncionais por meio de novas tecnologias introduzidas pontualmente nunca resolvem (lembre-se do Google Health).
A solução sistêmica para o ecossistema de saúde é manter a “coisa antiga” ao mesmo tempo em que se constrói uma “coisa nova” em paralelo.
A substituição terá de ser programada para ir acontecendo, não poderá implantada. O ecossistema novo começará “pequeno”, experimental, nas bordas do sistema atual, e vai tender a sugar o velho sistema componente a componente.