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O Pai de Todos

“Meus anos com a General Motors”, autobiografia de Alfred Sloan, está sendo re-lançado no Brasil pela editora Negócio. Não deixe de ler. Bill Gates diz que, caso você só queira ler um livro sobre business, o livro é esse. Concordo. A essência da coisa toda está lá; todos os temas eternos em management observados pelo ângulo que um manager de verdade deve escolher – tudo coordenado com tudo para a obtenção de um resultado. O livro é a história do processo que Sloan liderou na GM a partir do início dos anos 20. Mais que uma biografia é uma coleção de casos – estudo, pode-se dizer. Sua importância? Nunca houve um conjunto tão complexo e tão original de idéias, tão bem articulado para produzir um resultado específico; nunca houve um conjunto de ações que tenha produzido resultados mais duradouros no mundo das empresas. Esse livro – mais do que qualquer outro, define na teoria e demonstra na prática o que é ser um gerente. Sloan estava motivado por uma “missão impossível” – bater a Ford e seu Modelo T. Para isso, necessitava de uma empresa que operasse sob um modelo totalmente diferente do usual, e para implantar o que tinha na cabeça, criou uma disciplina – management.

Ford inventara um conceito de produto criando um setor industrial em torno dele: o negócio de automóveis. Sloan o reinventou. Ford realizara uma construção planejada segundo um conceito totalmente amarrado. Sloan fez o mesmo na GM, só que diferente. Não apenas diferente, mas de forma oposta. Para Ford, o consumidor era padronizado – seu foco era exclusivamente no produto; Sloan partiu de diferenças – no bolso e na cabeça – entre possíveis segmentos consumidores.

Não se trata de diminuir Ford. O historiador Richard Tedlow diz: “Em 1908 não havia, em todo o mundo, exemplo de ninguém que tivesse combinado com sucesso boa qualidade com preço baixo, produzindo em grandes quantidades um único modelo de carro. Quem fez isso foi Henry Ford. Sejamos absolutamente claros com relação a isso: não foi o mercado que fez, não foi a opinião pública, não foram os europeus, nem os políticos. Foi Henry Ford”.

No início da década de 20, falava-se em saturação de mercado. A maneira de vender carros – estabelecida para uma sociedade em que o automóvel fora novidade – estava obsoleta.

Propaganda, desenvolvimento de técnicas de venda, pesquisa de mercado… Tudo isso começou a aparecer. A Ford Motor Company (leia-se, Henry Ford) era totalmente contra essa história de “fazer marketing”.

A GM enfrentava os mesmos problemas mas sua vantagem era que Alfred Sloan tinha consciência deles. Ford recusava-se sequer a considerar a hipótese de ter que alterar algo em sua, até então, ultra-vitoriosa estratégia. Marketing para Ford era preço, preço, preço e mais nada. Em 1924, O Modelo T estava sendo vendido quase a preço de custo, o lucro por carro era dois dólares (uns U$50 em dinheiro de hoje).

Alfred Sloan tornou-se presidente da GM em 1923. Conhecia e respeitava Henry Ford, mas era bem diferente dele; tinha uma característica que Ford desconhecia: era um manager. Tinha “uma aguda percepção de que teria de haver uma estrutura organizada dentro da empresa, para que ela pudesse ter sucesso no mercado, lá fora”.

Seu interesse exclusivo eram “fatos reais”, não fantasias ou especulações. Não era, por exemplo, um fanático pelos modelos que fabricava. Segundo ele, o compromisso da GM não era com concepções de carros, era com lucro. Enfrentou a realidade dos novos tempos em várias frentes. Primeiro, organizou a empresa internamente. Sob seu comando, definiu-se uma moldura de organização e um esquema de funcionamento que fez escola – a escola em que os executivos se formam até hoje. Henry Ford odiava isso; sua empresa não tinha qualquer mecanismo gerencial. Ao tomar conhecimento do que Sloan planejava para a GM, disse: “Não é necessário que qualquer departamento dentro da Ford saiba o que outro está fazendo. Aqui não precisa haver organização, tarefas específicas, linha de sucessão ou autoridade.”

Sloan comenta em seu livro:

“O velho mestre não conseguia lidar com a mudança. Não me pergunte por quê. Mr. Ford, que tivera tantos insights brilhantes, parece nunca ter entendido quão completamente seu mercado havia mudado”.

Na General Motors, cinco modelos de automóvel seriam fabricados. Cada um teria apelo para um grupo específico de consumidores. Isso aumentava muito a complexidade do negócio e implicava um nível de organização interna sem precedentes. A visão de Sloan ia além. Ele queria mudar os modelos todo ano! Era arriscadíssimo. Os custos iriam explodir. Seria preciso criar competências novas – estilo, materiais, cores, design – moda, enfim. Os vendedores teriam de ser permanentemente treinados. Num setor em que, até então, a mesmice do Modelo T era o padrão único, era mudança demais.

A originalidade da criação de Alfred Sloan se resume assim: as economias de escala que a Ford conseguiu não podem ser superadas, portanto, não dá para competir por preço. A GM vai oferecer carros em vários segmentos de preço – do mais barato, ao bem mais caro que os Modelos T. Nas palavras dele: “…[vamos] dar uma mordida na parte de cima da posição de Ford…” e criar o desejo nas pessoas, de irem fazendo upgrade em seus modelos mais baratos, à medida que vão melhorando de vida. Começariam com o Chevrolet – o mais acessível – mas sonhariam o tempo todo em chegar, um dia, ao Cadillac – o símbolo máximo de status para o americano médio, durante décadas. É impressionante ouvir Sloan prever como essa estratégia tiraria partido da própria transformação da sociedade americana nas décadas seguintes.

Essa era a estratégia. Sloan definiu precisamente a forma de operar da organização que a implementaria, e foi seu comandante. Ela teria uma estrutura multi-divisional autônoma. As divisões decidiriam sobre a produção e comercialização de cada um dos cinco modelos. Haveria um forte staff central no comando da corporação, mas esse pessoal não se meteria nas ações do dia-a-dia, apenas auditaria as operações das divisões, planejaria e coordenaria a estratégia global da corporação. Colocar esse plano em prática significaria coordenar os designs, implantar novas redes de revendedores, obter informação de mercado sobre cada segmento, montar e operar fábricas diferentes e obter diferentes peças e insumos para cada carro. Essa variedade toda teria de ser coordenada de modo que os managers de cada divisão não competissem uns contra os outros. Teriam de trocar idéias sobre como melhorar produtos e reduzir custos, coordenar gastos de pesquisa e desenvolvimento, cooperar com fornecedores que produziam componentes como rolamentos, radiadores, motores de arranque e padronizar os designs o suficiente para atingir um mínimo de economia de escala. Para uniformizar a operação das divisões, Sloan promulgou um conjunto de “procedimentos padrão” e criou um conselho em que os executivos das divisões e o staff do escritório central discutiriam formas de explorar economias de escala. Relações com dealers? Recrutamento? Treinamento? Comunicação? Propaganda? Políticas de preço? Incentivos? Sistemas de remuneração? Está tudo no livro.

Foi uma tacada de mestre. Durante os anos vinte, a GM ultrapassou a Ford tanto em parcela de mercado como em lucro. Tudo anti-Ford. Sucesso total.

O leitor vai notar uma certa “distância” no estilo de Sloan – ele sempre achou que particularidades pessoais nada têm a ver com management. Homem de hábitos espartanos, sem filhos, sem hobbies, sua vida era a GM. Impediu a publicação do livro até que todos os seus ex-subordinados, citados nele, tivessem morrido. É que algo poderia ser interpretado como crítica, e “chefes não criticam subordinados em público”. O editor se desesperou: “talvez você morra antes”. “Então publique postumamente”, foi a resposta. O editor teve de esperar quase 10 anos. Sloan foi o último a morrer.

O homem que “inventou” o gerente profissional era assim. Peter Drucker, certa vez, resumiu as lições de “Meus anos…”. Reproduzo algumas delas para vocês:

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Profissionais não decidem com base em opiniões ou preferências, mas de acordo com fatos.
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Manager profissional não tem que gostar de gente, não tem que tentar mudar as pessoas, tem é de mobilizar o melhor das pessoas para obter resultados.
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Performance é mais que resultado, é também exemplo, e isso requer integridade.
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Discordância, conflito mesmo, são necessários e até desejáveis. Sem isso, não há entendimento, e sem entendimento só se tomam decisões erradas.
Drucker comenta que, para ele, as partes mais fascinantes do livro são as que reproduzem memorandos internos nos quais Sloan primeiro gera a discordância, depois sintetiza visões conflitantes e, no final, cria consenso e comprometimento.

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Liderança não é carisma. Não é “relações públicas”, não é exibicionismo. É performance, comportamento consistente, credibilidade.
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E, talvez o mais importante – o manager profissional é um prestador de serviço. Seu cliente é a empresa. Posição não confere privilégio; não dá poder, só impõe responsabilidade.
Entre 1927 e 1937 a GM teve lucro acumulado de 2 bilhões de dólares. A Ford deu um prejuízo de 100 milhões de dólares. A GM definiu o padrão de excelência da produção industrial até que, décadas depois, o Japão (Toyota) tornou-se o mais importante produtor de automóveis no mundo, atacando-a com uma versão atualizada da mesma estratégia que ela usara contra a Ford… Mas isso já é outra história. Espero que uma de nossas editoras (interrompendo um pouco a publicação dessa besteir…, perdão, dessa enxurrada “motivacional” que entope as prateleiras das livrarias) se interesse em lançar um livro sobre essa outra história também, e que, claro, a Exame me convide para fazer a resenha.

Fontes:

1- Alfred P. Sloan Jr; My Years With General Motors. Currency Doubleday, 1990.

Os comentários de Peter Drucker citados no texto foram retirados da introdução que ele fez a essa edição.

2 – Richard Tedlow; The Story Of Mass Marketing in America. Basic Books (Harper Collins), 1990.

Esse livro é um clássico. A melhor fonte que conheço sobre a evolução do marketing. As histórias da Coca-Cola, Ford Motor Company e General Motors estão descritas com todo detalhe.

3 – Stephen Haeckel; The Adaptive Enterprise. Harvard Business School Press, 1999.

A visão estrategista de Alfred Sloan é usada para ilustrar a necessidade de se definir precisamente a missão de uma empresa.

*Artigo publicado na revista Exame de 02/2001.

Estava faltando marketing

Para existir um Sloan foi preciso um Henry Ford antes

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