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O jogo das eleições

John Nash, o matemático vivido pelo ator Russell Crowe no filme Uma Mente Brilhante, é um expoente numa das áreas mais intrigantes da ciência aplicada – um assunto chamado teoria dos jogos. Nash usou a matemática para modelar situações de conflito de interesses. Nesse campo, porém, o grande craque foi o inventor da idéia – o húngaro radicado nos Estados Unidos, John von Neumann, de Princeton, a mesma universidade de Nash. Von Neumann tratou do seguinte: em situações de conflito, qual a maneira mais racional de agir? Ele criou a teoria dos jogos na década de 40 para ajudar na formulação de estratégias para os EUA na Guerra Fria, e chegou a recomendar que a União Soviética fosse atacada antes que se tornasse capaz de fabricar bombas nucleares. Era o racional a fazer. Eu sei, é meio cínico, mas tem muito a ver com campanhas eleitorais, por exemplo, e não apenas por causa do cinismo.

Pergunte a um candidato a presidente como ele se sente no papel de “produto” vendido por marqueteiros. Cem por cento vão negar – ofendidíssimos – que sejam “produtos” e usarão contorcionismos verbais incríveis para explicar que o que importa é o “conteúdo” de suas mensagens. Todos parecem envergonhados por terem contratado marqueteiros. Bobagem.

Há 42 anos, John Kennedy triturou Richard Nixon num debate pré-eleições na TV. Ninguém lembra exatamente o que discutiram, mas todos lembram que Kennedy ganhou o debate e as eleições. Nixon apareceu com a barba malfeita, foi enquadrado em ângulos desfavoráveis, pareceu mais sombrio, mais velho e mais baixo do que era de fato. De fato? Que fato? Fato em marketing é o que é percebido, e Kennedy foi percebido de forma mais favorável. Trinta anos depois, no Brasil, o resultado do segundo turno entre Collor e Lula foi também decisivamente influenciado por percepções (espontâneas ou manipuladas) relativas ao debate final entre os dois na TV.

Não há nada cujo sucesso dependa de aceitação em larga escala que possa prescindir de marketing: de religião (igrejas) a comércio exterior. Aposto que um fator decisivo para o aumento das exportações brasileiras é o marketing de nossos produtos lá fora, mais que a qualidade intrínseca deles. “Qualidade de produtos” é o mesmo que “conteúdo de candidatos” – não existe se o mercado não os percebe.

Vejam o caso do PT. Após três derrotas, imagina-se que gente mais pragmática lá dentro tenha se curvado à evidência de que “precisamos priorizar o marketing”, como diria um petista amigo meu. Para desgosto de parte do público interno do partido, o marqueteiro está lá e manda pacas. Mas o discurso da cúpula é: “Não deixaremos que ninguém se intrometa no conteúdo da mensagem. O marqueteiro é só para detalhes técnicos de comunicação”. Pode chamar isso de “marquetismo envergonhado”. Marketing não é sobre os marqueteiros, é sobre a natureza humana. Ele parte de nossa irracionalidade, de nossos medos e inseguranças… das motivações reais do ser humano como ele é. Falando em natureza humana, voltemos à teoria dos jogos. Seu ponto de partida é a constatação de que os jogadores buscam certos resultados em detrimento de outros. Essas preferências são chamadas de utilidade (ou função utilidade, como dizem os matemáticos). Utilidade é aquilo que os jogadores querem no fundo de suas almas. Utilidade para os políticos é, sempre, o poder. A utilidade que você atribui a certo resultado é o que determina sua estratégia no jogo, e aqui está o problema do PT.

A seis meses das eleições, as perspectivas do PT são animadoras, mas não se iluda: o partido tem um problema – a dificuldade de consenso interno sobre como maximizar a utilidade no jogo que está jogando. Que alianças seriam válidas, à luz da história do partido? Alianças, pela lógica do jogo das eleições, são essenciais. Sem elas, você pode ter o melhor marqueteiro do mundo, mas só vence por sorte. O PFL é o oposto. Seus políticos são chamados de “profissionais” porque não têm problema em admitir o que querem maximizar. Estão nas esferas mais altas do poder há décadas. Pode apostar que, baixada a poeira, decidirá sem escrúpulos pela estratégia que mais o aproxime da posição de que mais gosta: colado no poder. Entre os dois extremos do espectro – PT e PFL – os demais articulam as mais esdrúxulas alianças. Só ficamos chocados porque esquecemos da teoria dos jogos. Ela explica.

Uma estratégia clássica do marketing convencional ajuda a entender essa coisa de alianças: vender dois produtos juntos por um preço um pouco menor que a soma dos dois isolados pode ser muito vantajoso. Isto é: os dois produtos num mesmo pacote podem captar mais valor no mercado do que vendidos separadamente.

Compre o vídeo O Rei Leão e ganhe um desconto de 10 reais no do Pokémon. Ou seja: compre O Rei Leão e Pokémon no mesmo pacote e ganhe um desconto de 10 reais. Quando duas empresas resolvem se fundir, elas seguem a mesma lógica. Idem em eleições: vote no Lula e leve o senador do PL junto (ou seria o bispo?). Para decidir se um “pacote” desses compensa, você precisa ter boa previsão de mercado (quantas fitas a mais vou vender combinando os dois filmes? Que lucro adicional terei? Quantos votos ganho ou perco com a aliança?). Lembre-se: eleições são uma das raras instâncias em que previsões de mercado funcionam. No episódio da aliança com o PL, a cúpula do PT parece ter pensado: “Haverá um custo político, mas se ele for administrável pode valer a pena”. Perfeitamente racional, no espírito da teoria dos jogos, mas nem todos no partido topariam. Não há consenso interno sobre como maximizar a função utilidade no jogo das eleições. Na verdade, o PT joga dois jogos: um para dentro e outro para fora. Várias facções internas têm interesses conflitantes, entre si e com a cúpula. Pode não dar para gerenciar.

O jogo da eleição é sobre votos na urna. É um jogo de “soma zero”, mas apenas no dia decisivo, no segundo turno. Num jogo de soma zero (a especialidade do húngaro Von Neumann, o gênio de Princeton, citado no começo deste artigo), a vitória de um jogador implica a derrota do outro, como no xadrez ou no jogo-da-velha. Von Neumann não estava interessado em xadrez porque “esse tipo de jogo nada tem a ver com a vida real”, segundo ele. Pôquer seria algo mais próximo do que ele queria tratar. No pôquer, o blefe é algo fundamental. Ele estava interessado na trapaça, nas pequenas táticas de dissimulação, na desconfiança, na traição…

Sua genialidade foi perceber que dissimulação não só é algo racional em jogos de soma zero como também é tratável matematicamente. Sua teoria dos jogos lida com seres racionais e desconfiados querendo “se dar bem” a todo custo. Acho que ele adoraria analisar Big Brother, Casa dos Artistas ou a campanha eleitoral.

Em jogos de soma zero, Von Neumann provou que jogadores racionais têm de blefar. Porém, até o Dia D, no segundo turno, o racional é fazer alianças, isto é: colaborar. Esse outro tipo de jogo foi a especialidade de Nash, o personagem principal de Uma Mente Brilhante. No filme, há uma cena, passada num bar, em que Nash convence seus ultracompetitivos colegas a não tentarem conquistar todos a mesma moça. O mais racional, segundo ele, seria distribuírem seus esforços escolhendo alvos diferentes. Não se tratava de um jogo de soma zero, afinal.

Alianças são “pacotes” que permitem captar mais valor (utilidade/votos) no jogo decisivo. O inimigo de ontem é o parceiro de hoje. Política está cheia disso – é esquisito, mas é racional. O marqueteiro do PT é bom, o partido tem princípios, tem história, mas é fraco em estratégia, pois não tem consenso sobre a utilidade do jogo em que está. Não “saiu do armário” com relação ao poder. Se não se resolver, mesmo com eventuais oscilações momentaneamente favoráveis nas pesquisas, a situação de Lula será problemática até o último momento. Se fosse uma ação, hoje eu venderia.

*Artigo publicado na Revista Exame de 04/2002.

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