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O inventor da administração e o desafio brasileiro

Em 1994, a Amil convidou Peter Drucker para falar para um grupo de clientes, prospects e colaboradores. Na época, eu era diretor da empresa, e o apresentei assim: “Nenhum analista do mundo das organizações é mais respeitado que Drucker. Ele é uma espécie de oráculo moderno. Previu muitos dos grandes temas da segunda metade do século XX: o impacto do computador, a forma pela qual a informação moldaria e alteraria a sociedade, o desafio econômico japonês, o colapso da URSS. Percebeu a necessidade de novos conceitos e, além de defini-los, inventou seus nomes: “privatização”, “sociedade do conhecimento”… Nos anos 50, notou uma revolução a caminho: sucesso nos negócios não dependeria mais da idade, tamanho, reputação, ou poderio financeiro – mas da forma como a empresa era dirigida.”

No intervalo, Drucker me chamou num canto e me puxou a orelha: “Nunca faço previsões”, disse. “A última que fiz foi em 1929, quando escrevi que a bolsa de Nova York logo se recuperaria. Eu tinha vinte anos, e o vexame me imunizou contra previsões. O que faço é chamar a atenção para conseqüências inevitáveis de fatos que já aconteceram. É possível nos prepararmos para um futuro que já chegou…”.

Não esperou resposta (ainda bem, eu não tinha), deu um sorriso maroto, e foi conversar com outras pessoas. Mas, se não tinha resposta, eu teria uma pergunta: será que podemos usar seu método (chame-o como quiser) para vislumbrar para o Brasil esse tal “futuro que já chegou”? Depois de estudar melhor o que ele escreveu, antes e depois daquele encontro, eu arriscaria dizer que sim.

Para Drucker, o fator-chave que vai determinar os desdobramentos econômicos é a demografia. Ele parte das tendências demográficas atuais, olha para a história econômica desde a revolução industrial e vê mais revoluções chegando: na natureza do trabalho, nas relações empresa-empregado, em educação, e em assistência à saúde. Você pode pensar que isso só vale para países desenvolvidos. Não. Vale para emergentes como a China e o Brasil também. É notável que estejamos submetidos hoje aos mesmos fatores que já determinam a lógica do futuro do mundo rico. Nossas tendências demográficas são idênticas às deles – taxa de nascimentos abaixo da taxa de reposição (população mais velha aumentando); mulheres cada vez mais influentes nas opções da sociedade; mercados, antes homogêneos, fragmentando-se em nichos. Além disso, temos uma economia relevante internacionalmente, boa base industrial (e agricultura idem) e uma elite gerencial (ainda proporcionalmente pequena, admito) que não perde em qualidade para a de nenhum outro país.

Minha tese é a seguinte: o grande desafio do próximo governo é articular políticas para ampliar essa nossa zona de interseção com os desenvolvidos, ao mesmo tempo em que implementa políticas para dar conta de nossas necessidades imediatas (segurança, emprego, escola básica etc). Ou seja: não dá para primeiro resolvermos o imediato para depois passarmos ao futuro. Tem de ser simultâneo. No que se refere ao futuro que já chegou, nossos desafios são os mesmos dos ricos, e é aí que nossas decisões (ou omissões) vão determinar o que seremos. Portanto, não basta prometer mais “emprego e educação”, é essencial perguntar “Que tipo de emprego? Qual educação?”. Eu me apoiaria em Peter Drucker para sugerir certas políticas, antes porém, tentemos desvendar o método que está por trás de tantos acertos do velho guru.

A ênfase central de Drucker é a realização do ser humano. Seres humanos só se realizam sendo produtivos. Organizações são importantes, porque são o instrumento para que eles sejam produtivos, e administração é “a mais importante invenção do século XX” porque é a disciplina específica para que as organizações cumpram esse papel. Peter Drucker quer encaixar o homem e o que ele produz dentro da aventura humana maior. Não produtos, não empresas, não tecnologias. Pessoas. Sempre partiu delas. Seu livro sobre a GM dos anos 40, “The Concept of the Corporation”, é um manifesto a favor dos empregados. Drucker, já naquela época, queria que a empresa passasse a vê-los como recursos, não como custos. Sugeriu equipes auto-gerenciadas, entre outras coisas. A GM não topou, mas, trinta anos depois, pressionada pelos japoneses, teve de seguir suas recomendações a um custo altíssimo.

Para ver o futuro, Drucker se inspira na dinâmica da história: “Há um século, as pessoas ainda estavam nas fazendas arando a terra. Os artífices trabalhavam sozinhos, ou com um ou dois ajudantes; quase ninguém trabalhava em organizações (exceto padres, militares, professores – grupos muito pequenos). Mas, com o fordismo, isso acabou. Não era mais preciso ter habilidade para trabalhar. A partir daí, as pessoas só conseguiam ser produtivas pertencendo a organizações”.

Onde esse movimento está nos levando? Ele responde: “O papel do capital na economia, hoje, está sendo desempenhado pelo conhecimento. A revolução industrial aplicou o conhecimento às máquinas; a revolução da produtividade de Frederick Taylor aplicou conhecimento ao trabalho; e a revolução gerencial de meados do século XX aplicou conhecimento ao conhecimento”. A continuidade desse processo é que está moldando a nova sociedade – aplicação contínua de conhecimento novo ao que se conhece. Novas tecnologias não vão “resolver o futuro”. O que vai resolvê-lo é tornar o conhecimento produtivo de maneiras originais. Isso é 100% válido para o Brasil.

Conhecimento é portável, transferível, não tem barreiras geográficas. A globalização é uma conseqüência disso. É errado pensar que há um jeito brasileiro de administrar. É errado achar que, por sermos brasileiros, precisamos de conhecimento específico “brasileiro”, como se nossa produtividade tivesse uma especificidade mulata ou tropical. Como se os brasileiros fossem seres humanos diferentes. Lembro de Drucker desmontando essa idéia naquela palestra em 1994, depois que alguém tentou argumentar que “aqui no Brasil é diferente”. Não é. É igual.

Ele discute sempre a vida econômica em termos de valores: integridade, caráter, responsabilidade, deveres, dignidade, significado, qualidade de vida… Raramente seu foco é dinheiro. Critica a “imoralidade” dos altos salários dos executivos; contesta a noção de que a posse da empresa legitima seu controle; fala com desdém de empresas que exigem “devoção e lealdade” de seus funcionários. Para ele, isso é “invasão ilegal da privacidade; abuso de poder;usurpação pura e simples”. Diz que empresas só existem por delegação da sociedade, e têm de prestar contas a ela. Só se legitimam se funcionam como veículo para que as pessoas se realizem, não se seus donos ficam ricos.

Entre parênteses: fico imaginando o que Peter Drucker diria dessa nossa tendência tão verde e amarela para manter o controle das empresas, eternamente, nas mãos de seus donos tradicionais. Nossas práticas de “governança” – como mostra um recente estudo da McKinsey disponível na Internet – não coincidem com a visão de Drucker sobre o que deve ser uma empresa. Claro que há justificativas históricas (e recentes) para isso: naquele pandemônio inflacionário de alguns anos atrás, com congelamentos e planos miraculosos se sucedendo, as empresas tinham de responder com uma agilidade que só a centralização do poder dá. Mas será que isso justifica, ainda hoje, a falta de interesse dos empresários brasileiros num tema que é essencial para posicioná-los (e ao Brasil) seriamente diante da comunidade internacional?

O que derrotou o marxismo foi a aplicação de conhecimento ao trabalho. Quer dizer, foi management. O fato, inquestionável, é que graças a isso, os trabalhadores começaram a viver melhor. O ideal igualitário marxista naufragou ao colidir com um rochedo de hambúrguer (ou teria sido de rosbife?). O segredo que se descobriu foi: trabalhar com mais inteligência é mais produtivo do que trabalhar mais. O que faz alguns países crescerem de forma sustentada não são novas tecnologias, são novas organizações e novos conceitos gerenciais.

O McDonald’s (sim, Messieur Bové, o McDonald’s) e a invenção do fast food nos anos 50. A Toyota, com seu just in time nos anos 60. A Southwest Airlines e seu modelo de aviação comercial nos anos 70. As ONGs, os fundos de pensão como investidores, as organizações transnacionais. Conceitos novos são mais importantes que novas tecnologias. O conceito de linha de montagem de Henry Ford, e a estrutura da GM com Sloan, nos anos 20, são mais notáveis do que a tecnologia do automóvel em si. A Dell (just in time com computadores) é mais importante que computador. O hospital é mais importante que qualquer tecnologia médica ou avanço terapêutico (aliás, alguém bem que podia aplicar conhecimento novo ao conceito vigente de hospital. Por que inovação nessa área é praticamente inexistente em todo o mundo?).

Portanto, não se trata de tecnologia. A ênfase não pode ser tecnologia – um erro que dirigentes brasileiros continuam a cometer. A quantidade de computadores nas escolas, ou o “sistema operacional” a ser utilizado, são temas secundários. O que conta é o uso da tecnologia de modo imaginativo. Drucker zomba: “A GM jogou fora 30 bilhões de dólares, investindo em robots, até que descobriu que não era tecnologia, era informação que contava”.

Nossa concepção de economia (no Brasil e fora) ainda é muito centrada em “coisas”. Nossos políticos nos induzem a crer na fantasia de que emprego de verdade é emprego em fábrica. Mas esse tipo de emprego está se tornando crescentemente desimportante. Numa sociedade cuja riqueza vem de intangíveis (informação/criatividade/conhecimento), o ouput físico aumenta mas a quantidade de pessoas que o produz, diminui. Portanto, é urgentíssimo tratarmos hoje das implicações disso.

As pessoas nunca foram realmente importantes na equação econômica. Elas são consideradas custos, não recursos. É o sistema que é importante – o “one best way” de Frederick Taylor, a linha de montagem de Ford, a Qualidade Total de Deming. O sistema é rei porque tem permitido a trabalhadores sem talento e sem preparo saírem-se bem. Um operário de linha de montagem não pode ser melhor que a média. Tem de ser medíocre. Atrapalha a produção se não se conformar ao padrão. A nova sociedade – da qual o Brasil tem de querer participar como ator, não como figurante – é o oposto disso. Nela, o trabalhador vai ser valorizado por seu conhecimento individual. Seu conhecimento é dele, não da empresa, não do sistema. A empresa precisará mais dele que ele dela. E não estou falando necessariamente de MBAs, nem mesmo de universitários.

Distribuir renda para valer, só com educação. A desigualdade real é, e será cada vez mais, entre gente com educação formal e gente sem ela. Deixar esse gap aumentar é perpetuar a exclusão. Qualquer política integradora (racial, social) no Brasil terá de passar pela educação. Instituir cotas para negros é um gesto de boa vontade e reconhecimento. Tem sua simbologia, mas será irrelevante se não vier junto com políticas específicas para facilitar o acesso dos negros à educação. Eu (que tenho um interesse, digamos, epidérmico nesse tema) abriria mão tranqüilamente das cotas, mas não arredaria um palmo na exigência de políticas específicas para facilitar o acesso dos negros ao conhecimento. O que gera riqueza, integra e realiza, é aptidão para aplicar conhecimento ao conhecimento.

Os grandes desafios da nova sociedade (que Drucker identifica sem ter nenhum país particular em mente, e que eu afirmo serem válidos para o Brasil) são os seguintes:

a. Aumentar a produtividade qualificando as pessoas, não colocando mais pessoas desqualificadas (recursos) no mercado de trabalho. Pessoas, na era do conhecimento, não são mais trabalho, são capital.

b. Aprender a medir e aumentar a produtividade dos trabalhadores do conhecimento. Ninguém sabe como fazer isso ainda. Exatamente por isso, países como o nosso têm uma chance realista de queimar etapas, e saltar para um patamar qualitativamente mais avançado. Não se trata de “progredir”, trata-se de inovar. As instituições e políticas da era do conhecimento são desestabilizadoras. Focam novas formas de trabalhar e produzir. Sua missão é colocar, continuamente, o conhecimento para trabalhar : “em ferramentas, em processos, em produtos, no próprio trabalho, no próprio conhecimento”. Está tudo meio “zero a zero” nisso. A única vantagem comparativa dos países desenvolvidos é na proporção de pessoas em condições de contribuir criativamente. Repito: a única. Brasileiro não precisa ter complexo de inferioridade – a elite dos trabalhadores do conhecimento no Brasil (economistas, médicos, engenheiros, gerentes de empresas de certo porte) não deve nada aos seus equivalentes nos países desenvolvidos. Nadinha.

Há também a questão demográfica. Nossa proporção de gente mais velha, em condições de continuar produzindo, está aumentando. O que Drucker diz disso se aplica precisamente ao Brasil. “Já e hora de uma drástica reorientação educacional. Temos de passar de uma concentração quase exclusiva no aprendizado prolongado de jovens, para uma nova ênfase em aprendizado contínuo de adultos. O aprendizado contínuo seria uma ousada resposta do setor público à exposição da força de trabalho a uma economia em que o trabalho voltado para o conhecimento é a vantagem comparativa. Isso é novo e mudará o mundo em que vivemos e trabalhamos. Mesmo para adultos bem treinados e com alto conhecimento, a educação nunca terminará, porque o conhecimento se torna rapidamente obsoleto. Educação contínua de adultos será um dos mais dinâmicos setores da economia”.

A classe predominante na sociedade do conhecimento, em uma ou duas décadas, será a dos tecnólogos do conhecimento – técnicos de computador, designers de software, especialista em redes, paramédicos, paralegais, analistas clínicos, especialistas em ultrasom, fisioterapeutas. Esse grupo não existia há um século. Eles terão de ter educação formal, não treinamento tipo mestre-aprendiz. “Nos próximos anos, instituições educacionais para preparar tecnólogos do conhecimento vão crescer rapidamente em todos os países desenvolvidos e emergentes, da mesma forma que novas instituições de ensino surgiram, no passado, em resposta a novas necessidades. Poucos países oferecem preparação organizada e sistemática para isso”. A ênfase brasileira atual (e correta) em ensino fundamental, deve conviver com uma ênfase nova: preparação de tecnólogos do conhecimento. Devemos experimentar vários formatos para isso: ensino à distância, cursos curtos, de fim de semana, de até dois anos, workshops, modelos mistos presencial-virtual etc. A atual explosão de ofertas de cursos superiores e MBAs (aaargh!) é a resposta a uma oportunidade de mercado: tem mais dinheiro no topo da pirâmide. Nada contra, mas, e o ensino profissional médio? O Brasil tem uma ótima oportunidade aqui porque não precisa começar do zero. Instituições de ensino profissionalizante devem ser incentivadas, e organizações como o SENAC e outras do chamado sistema “S” podem e devem voltar-se rapidamente para isso. Se optarmos por abraçar mesmo nosso “futuro que já chegou”, aumentos de produtividade (nossa única chance de sairmos da vala comum dos emergentes) virão daí. Temos de rejeitar a pirâmide tradicional, com essa base enorme de gente despreparada. Temos de construir algo cuja base não seja embaixo, seja no meio, entende? Não pode ser MBA no topo, e gente sem qualquer educação na base. Não podemos deixar nossa vocação brasileira para produzir abismos sociais se manifestar de novo nisso. Nem todo mundo poderá ser top, mas muito mais gente poderá estar adequadamente empregada e produtiva. Portanto, muito mais gente poderá estar mais feliz. Temos de ter um pé no hoje, mas o outro tem de estar resolutamente no amanhã. O desafio do novo governo é fazer isso sem perder o equilíbrio.

Peter Drucker garante que está apenas descrevendo um futuro que já chegou. Será que nós brasileiros estamos enxergando o nosso?

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REFERÊNCIAS

1. Peter Drucker on the next Society

– The Economist, 11/2001.

2. O mundo segundo Peter Drucker

3. Post Capitalist

4. Brazilian boardrooms

– www.mckinseyquarterly.com/links/1107- entrevista na revista Wired, 08/1993. – Jack Beatty, Editora Futura, 1998.
*Artigo publicado na Revista Exame, 05/2002.

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