Como o (verdadeiro) “caso KODAK” deve inspirar os hospitais de excelência
Imagine uma organização tradicional, reconhecida internacionalmente, competente no manejo de tecnologias sofisticadas, respeitadíssima, líder em pesquisa & desenvolvimento, repleta de profissionais de alto nível, referência em excelência, vanguardismo e inovação.
Estou falando da KODAK (que quebrou no início de 2012), mas poderia estar falando de alguns hospitais e empresas de saúde em plena atividade, saudáveis, e sem qualquer perspectiva de dificuldades maiores. Em outros setores, empresas centenárias se foram, mas ninguém vislumbra um futuro sem hospitais.
Na verdade, o negócio “hospital” é um business bem atraente no Brasil (melhor do que “operadora de saúde”, por exemplo). Certas redes hospitalares e empresas de saúde são negócios pujantes por aqui e fora.
Bem… Ninguém me perguntou, se tivesse perguntado eu sugeriria que se preparassem. Realmente, não há mudança iminente à vista, mas não é inteligente esperar que haja. A hora de tomar certas decisões é agora.
É que a pandemia amplificou uma “tendência” já inevitável, mas que agora vai ganhar tração: a digitalização da medicina (da saúde!) vai se acelerar.
Quando a digitalização toma conta de um setor aparecem plataformas digitais que podem reduzir marcas centenárias a pó.
Se o digital entrar pra valer na saúde haverá uma grande reviravolta no setor, e não apenas na entrega do serviço assistencial (telemedicina), mas principalmente via novas organizações que surgirão com modelos de negócios diferentes dos de hoje (PS: “modelo de negócio” é a fórmula que uma empresa usa para ganhar dinheiro).
Nada a ver com o hospital ou com a prática médica tradicionais.
Plataformas digitais, quase sem ativos físicos, movidas à informação pura, são um fenômeno que já conhecemos de outros setores: varejo, comunicação, mídia entretenimento/lazer/turismo, transporte, finanças, negócios B2B, pesquisa e desenvolvimento (de tudo q resulta de pesquisa e desenvolvimento), serviços profissionais… Em educação e saúde elas também existem, mas têm evoluído lentamente. Agora vão acelerar.
Este será o legado para a saúde no mundo que estão chamando de pós pandemia. É bom que executivos de organizações estabelecidas entendam as implicações disso. Foram as plataforma digitais que vitimaram a KODAK e outras.
Não foi a câmera digital (primeiro) ou o telefone celular (depois). Foram plataformas digitais associadas a esses aparelhos na produção e compartilhamento de imagens. Essas plataformas orquestraram ecossistemas de fornecedores e usuários, conectando compradores, produtores de insumos, fabricantes e provedores de serviços. Facilitando interações entre esses atores via transações automatizadas.
O processo durou décadas em fotografia. A FUJI, que sempre esteve à sombra da Kodak (em segundo lugar) reagiu certo e está viva. A Kodak reagiu errado e está morta.
Os hospitais hoje associados à excelência médica, devem se antecipar à “ameaça digital” fazendo o que a FUJI fez: explorando sua grande competência técnica para entrar em atividades não relacionados a hospitais.Mercados para isso serão criados pela mesma onda digital que poderá tornar o hospital obsoleto.
Os hospitais devem se preparar para competir com base nas CAPACIDADES que têm: conhecimento, P&D, gente, tecnologia avançada, expertise em abordagens novas para tratamentos. Essas coisas podem lhes abrir caminho em vários setores (existentes e emergentes) que não são “hospitalares”.
Devem tirar a ênfase da competição por leitos (competição por “doentes deitados” como se diz deselegantemente no meio).
A derrocada digital da Kodak levou quase 40 anos para se concretizar.
Os jornais tradicionais tiveram cerca de 12 anos de vida após o choque da Internet.
A Nokia e a RIM (BlackBerry) tiveram apenas 5 anos antes que seus belos negócios, arduamente construídos ao longo de décadas, fossem destruídos.
Vou explicar melhor usando o caso da KODAK.
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Em 1975, em Rochester, Nova York, um jovem engenheiro chamado Steve Sasson criou uma ferramenta para captura de imagens digitais. O aparelho era do tamanho de uma torradeira, levava vinte segundos para registrar uma imagem, pesava quase 4 kilos, e sua resolução era de 0.01 megapixels (compare com a da câmera de seu celular).
Eis o cara e sua criação.
Sasson trabalhava na KODAK- empresa que dominava o mercado de filmes químicos de halogeneto de prata, no qual tinha participação de 80% e margem de lucro de 70%. Na prática, a KODAK era a dona do universo da imagem fotográfica.
Aí aparece um pesquisador com um protótipo de câmera que não usa filme? Fala sério! A resposta da empresa foi: “Esconde isso e não conta a ninguém “.
A KODAK fabricava câmeras, mas ganhava dinheiro mesmo era com aqueles filmes que conhecemos- cartuchos cilíndricos vendidos em embalagens amarela e vermelha . Tinha uma expertise invejável num negócio que não é para qualquer um. Mas,..
…Como já veremos, um dos “perigos” do digital (para quem acha que seu saber é especial) é colocar conhecimento que antes era para poucos, ao alcance de qualquer um.
Filme fotográfico é produzido por uma combinação refinada de tecnologias. Num filme, há 20 camadas uniformemente revestidas, cada uma sensível à uma das três cores primárias -vermelho, azul e verde. Cada camada tem espessura um mícron (1 milésimo de milímetro) . Produtos químicos sofisticados são adicionados- fotossensibilizadores, corantes, aglomeradores .., depositados em espessuras precisas, enquanto a tira de filme se move.Tiras largas são cortadas e coladas continuamente; o filme, com todas as camadas de revestimento, é enrolado e embalado nas caixinhas .Tudo feito em completa escuridão .
Apenas dois concorrentes eram páreo para a KODAK em filmes (Fujifilm e Agfa), mas o mercado mundial era uma corridas de dois cavalos apenas- KODAK e FUJI. Agfa e Konica corriam por fora e bem longe.
A história era fantástica. A estratégia da KODAK era semelhante à da Gillette e dos fabricantes de impressoras: dê os aparelhos quase de graça (barbeadores ou impressoras) para ganhar dinheiro com lâminas e cartuchos de tinta. FUJI e KODAK tinham lançado câmeras descartáveis na década de 1980 para vender mais filmes. Filme fotográfico era tudo para elas.
O que aconteceu ? A onda digital começou a lamber a fotografia. Começou a fazer isso via câmeras digitais.
A KODAK não estava cega nem era míope. Investiu fortemente , introduzindo sua primeira câmera digital em 1990. Em 2000, já era um dos principais produtores de imagens digitais. Em 2001 tomou a decisão ousada de comprar um site emergente de compartilhamento de fotos chamado OFOTO, adotando seu slogan histórico- “Compartilhe memórias, compartilhe vida”.
Nessa altura, poderíamos imaginar o seguinte desdobramento dessa história: a KODAK renomeia o OFOTO que passa a ser “Momentos Kodak”, e transforma-se na líder de uma nova categoria chamada “rede social“, onde as pessoas compartilham fotos, coisas pessoais e links para notícias e informações.
Em 2015, o “Momentos Kodak” tem centenas de milhões de usuários. A empresa ainda vende filmes químicos para nichos de mercado, mas seu centro de gravidade mudou para as redes sociais. Ela gerenciou habilmente a transição, e emergiu de um choque potencialmente mortal como uma organização diferente, mas muito vibrante.
Mas não foi isso que aconteceu.
Em 2012 a KODAK estava quebrada.
Ela realmente investira no digital, foi líder de mercado em câmeras digitais, e comprou o OFOTO, mas, em vez de transformá-lo em uma rede social pujante, tentou usar o OFOTO para para fazer as pessoas….. imprimirem mais fotos!
Em 2001, as vendas de filmes químicos atingiram o pico histórico, mas depois aconteceu como no episódio relatado num romance de Hemingway, em que alguém pergunta a um personagem:
– Como foi que sua empresa quebrou?
- De duas maneiras. Primeiro, gradualmente; depois, de repente .
Primeiro, o mercado para filmes analógicos encolheu lentamente, mas depois acelerou a queda e passou a despencar 20 a 30% todo ano. Em 2010 a demanda mundial por filmes era um décimo do que fora dez anos antes.
O mercado para filmes não desaparecera, tinha mudado. Nos anos 90, as pessoas começaram a comprar câmeras digitais.
Para KODAK e FUJI a transição de imagem analógica para a digital era o inferno.
Primeiro, a plataforma de tecnologia de semicondutores usada para montar câmeras não tinha nada a ver com a de fabricação de filmes. Um bom engenheiro poderia comprar todos os componentes, montar uma câmera e vender no mercado. Você não precisava de experiência e habilidades especializadas. Vendedores de componentes ofereciam a tecnologia a qualquer um que pagasse.
Em outras palavras, a era digital trouxe o oposto exato do modelo dos filmes analógicos no qual KODAK e FUJI ganhavam rios de dinheiro protegidas por uma expertise tecnológica inigualável.
O chip comoditizou a expertise. Décadas de conhecimento em química fina migraram para uma ferramenta barata.
Os filmes sumiram e a venda de câmeras digitais não compensava; KODAK e FUJI perderam dinheiro com elas quando se viram forçadas a abandonar sua confortável briga de compadres para competir contra dezenas de empresas de câmeras digitais que se contentavam com lucro baixo. Ao contrário dos filmes coloridos, qualquer um poderia acoplar um sensor e um processador e lançar um produto no mercado. Foi exatamente o que aconteceu.
A Kodak vendeu muitas câmeras digitais, foi líder de mercado em câmeras digitais, apenas não ganhava dinheiro com câmeras digitais. Investiu, comprou o OFOTO, mas nunca perdeu a obsessão pela imagem impressa.
No final dos anos 90- quando a Internet começava a ficar confiável para os negócios- instalou às pressas 10.000 quiosques digitais nas lojas de revelação de fotos parceiras da Kodak, para que clientes pudessem imprimir suas imagens .
Tentou replicar o modelo de negócios de halogeneto de prata no mundo digital.
Em abril de 2012 a Kodak vendeu o OFOTO por menos de US $ 25 milhões (ou seja, deu).
Nesse mesmo mês, o FACEBOOK comprou o INSTAGRAM por US $ 1 bilhão. Em algum universo paralelo, o OFOTO poderia ter se tornado a principal plataforma de compartilhamento de imagens online.
Poderia.
A KODAK não foi capaz de mudar seu modelo de negócio (quer dizer, sua fórmula para ganhar mais do que gasta) e, à medida que o filme declinava, ela caminhava para o abismo. Tinha talento, dinheiro e queria fazer a transição, mas não deu.
A FUJI conseguiu. Como?
O quadro era claro: câmeras digitais não salvariam nem KODAK nem FUJI pois simplesmente não davam dinheiro. Não o dinheiro com que ambas se acostumaram. Não o suficiente para satisfazer seus acionistas.
A FUJI então, lançou uma ampla operação de diversificação com base nos recursos e capacidades que tinha acumulado em 70 anos. Seu objetivo era simples :”salvar a empresa do desastre garantindo sua viabilidade ..”. Era só isso.
O objetivo da estratégia da FUJI não era “salvar a empresa fazendo câmeras, ou filmes, ou o que fosse…”.
Era: “salvar a empresa do desastre, fazendo o que fosse preciso”.
Partiram para identificar mercados- qualquer mercado!- em que a FUJI tivesse recursos/competência para entrar. Suas tecnologias seriam adaptadas para produtos farmacêuticos, cosméticos e materiais altamente especializados.
Por exemplo, detectaram que telas de LCD poderiam vir a ser muito demandadas, e a partir das tecnologias de filmes fotográficos que dominavam, criaram uma variedade de películas de alto desempenho, essenciais para painéis LCD de TVs, computadores e smartphones. Hoje dominam 70% do mercado de filmes polarizadores de proteção LCD.
Cosméticos também.
A FUJI tinha 70 anos de experiência num tipo de gelatina que é o o principal ingrediente do filme fotográfico, e que é derivado do colágeno. A pele humana é 70% colágeno, substância responsável por seu brilho e elasticidade. A FUJI também possuía profundo conhecimento em oxidação, um processo ligado tanto ao envelhecimento da pele, quanto ao descolorimento (amarelamento) de fotos em papel . Na biblioteca de 200.000 compostos químicos da FUJI, cerca de 4.000 estão relacionados a anti-oxidantes. Assim, ela lançou uma linha de maquiagem em 2007 chamada Astalift. Competir por capacidade é isso.
Em 2010, nove anos depois daquele pico de venda que prenunciava o fim , a FUJIFILM era outra empresa. No ano 2000, 60% de suas vendas e 70% do lucro tinham vindo do ecossistema de filmes; em 2010 isso caíra para menos de 16%. A empresa conseguira sair da tempestade.
A KODAK não reconheceu completamente que o crescimento da imagem digital teria conseqüências terríveis para o futuro da impressão de fotos. A empresa poderia perfeitamente competir com base em suas CAPACIDADES como a FUJI fez (as capacidades da KODAK eram ainda maiores), mas preferiu brigar pelos mercados em que já estava.
De fora, parecia que ,no fundo, a KODAK não queria realmente mudar. Decidiu que sua capacidade/conhecimento não estava em produtos químicos, mas em imagens. Quis usar câmeras digitais para oferecer aos clientes a possibilidade de publicar e compartilhar fotos online… e imprimi-las, é claro.
O CEO da FUJI à época diz que “usava uma espada de bambu, enquanto a KODAK usava uma de aço”. Queria dizer que quando se luta com espada de aço “perder significa morrer”, e eles não podiam dar-se ao luxo de errar. Quando decidira investir em filmes para telas de LCD ninguém sabia ao certo se uma outra tecnologia emergente- plasma (que não exigia filme!)- não a superaria. Investiram em quatro diferentes opções, e a história ficou a seu lado. Hoje, a FUJI controla 70% do mercado de película para LCD em todo o mundo.
Repetindo:
A derrocada da Kodak levou quase 40 anos para se concretizar. Os jornais tradicionais tiveram cerca de 12 anos de sobrevida. A Nokia e a RIM (BlackBerry) tiveram apenas 5 anos antes de serem destruídos.
Quando o digital chega não se trata mais de evoluir dentro do mesmo setor, mas de abandonar equivalentes às “indústria de fotos digitais” , e usar conhecimento interno para entrar em outras atividades. O ideal é ir fazendo isso antes da grande onda chegar.
É o que a indústria hospitalar deve fazer.