As leitoras digitais só vão acabar com alguns tipos de livro
Google, Amazon, Microsoft, Yahoo e mais todas as grandes editoras, estão digitalizando livros. Pelo pedigree dos envolvidos, não há dúvida: apostam que esse objeto – na essência, ainda um produto medieval – vai mudar. A líder no esforço é o Google – 10 milhões de títulos digitalizados por ano. A Amazon acaba de lançar o Kindle – aparelho que baixa conteúdos digitalizados direto, sem precisar de um PC. Você pode carregar centenas de livros no aparelhinho, e ler onde quiser. A aposta é que o Kindle vai se transformar no iPod dos livros. Estima-se que haja cerca de 65 milhões de títulos no mundo. Vai dar certo?
Bem, ninguém me perguntou, se perguntasse eu diria o seguinte: o significado do que chamamos “livro” depende das circunstâncias do seu uso. A mídia por meio da qual é feita a leitura (papel ou leitor digital) dependerá dessas circunstâncias, e só delas. Quando a coisa for – “quero ler pelo prazer de ler/não quero aprender nada” (novelas, romances) o papel ganha fácil. Tem gente que gosta de ler na cama, na praia, na banheira. Não será prático levar o aparelho para esses lugares. Agora, na circunstancia: “quero fazer uma consulta” (dicionário/manual), ou “quero aprender rapidamente sobre um episódio histórico” (enciclopédia), ou “encontrar um endereço” (catálogo), então, o leitor digital é o tal. Tudo que é para ser consultado episodicamente é bom candidato ao formato digital. A chave da coisa é entender como se subdividem os tais 65 milhões de títulos por circunstância de leitura. Segmentação por circunstância é diferente de por atributo. Atributo é o que você é, circunstância é como você vive sua vida. Se a Casas Bahia segmentasse por atributo, ela pensaria assim: dona Maria, empregada doméstica, sem carteira assinada, R$400 por mês, sem CPF, sem conta em banco. E dona Maria não teria crédito. Mas a Casas Bahia pensou assim: dona Maria passou a ter um dinheirinho sobrando depois que a inflação acabou, e agora pode pagar (muitas) pequenas prestações para realizar o sonho de sua vida: ter um fogão (de 6 bocas) igual ao da sua patroa. Nem todo mundo compra livro para ler. A Enciclopédia Britânica no auge do sucesso (antes de quebrar, no final dos anos 80) era um veículo para pais de adolescentes aplacarem sentimentos de culpa por não investirem o suficiente no futuro dos filhos. Os adolescentes nunca abriam aquilo, mas a Britânica era um sucesso. Culpa de pais é uma coisa maciça. Só se aplaca de forma volumosa e cara. Digitalizar não seria jamais a onda da Britânica, como é a da Wikipedia hoje.
A Wikipedia quer ser só fonte de consulta, não quer aplacar culpa de ninguém. Uma vez, alguém tentou uma versão de leitora digital para livros-texto de estudantes universitários. Eles baixariam novos conteúdos periodicamente, e seu conhecimento estaria sempre atualizado. Leitor, seja sincero: mais conteúdo é parte das circunstâncias que definem a motivação de um estudante universitário típico? Não, não é. Ao contrário, a circunstância que o define é : “quero a mídia que me faça passar na prova com o mínimo de esforço”. Para eles, um site de macetes (sugestão: www.macetesdocacete.com.br) terá muito mais chances comerciais que a leitora digital.
* Artigo publicado na Revista Época Negócios – Nº 11 – Janeiro 2008 – P. 92 – Coluna INOVAÇÃO.
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