A pandemia do Corona não é um “Cisne Negro“- evento imprevisível, raro e catastrófico- na definição do mais celebrado especialista em risco dos dias atuais, Nassim Taleb.
Foi prevista e era evitável. Teria sido evitada se a “governança do planeta”- os mecanismos e processos de decisão que regulam o mundo- estivesse atenta para a ciência certa para lidar com o tipo de risco que corremos – a Ciência da Complexidade.
Pesquisadores tinham alertado que mercados de animais exóticos na China, onde se vendiam “morcegos ferradura”, concentravam um risco brutal de propagação de um certo tipo de vírus corona. A propagação , previsível,era um “Cisne Branco”, um animal que sabe-se que existe, não seria surpresa (aqui minha explicação sobre o que um vírus “quer’).
Taleb, em 2007, escreveu que uma possível pandemia seria o maior risco concebível para o planeta; maior que o risco ambiental, ou o de explosões de usinas nucleares (à lá Chernobyl), ou de terremotos, guerras ou ataques terroristas.
Em 26 de janeiro de 2020, num papercom outros pesquisadores da complexidade, escreveu que os governos deveriam “matar o risco dentro do ovo, fechando fronteiras e promovendo isolamento maciço”. Não deveriam ter receio de parecer estar em pânico. ..”é melhor entrar em pânico mais cedo do que mais tarde”. “Não fiquem esperando evidências científicas”. Não existe “ciência” aqui. Fuja!
Não ouviram. Taleb zoou: “se tivessem nos ouvido teriam gasto centavos, agora vão gastar trilhões”.
Os critérios “normais” da ciência que conhecemos não existem no lugar (matemático) de onde vêm os riscos extremos .
Nassim Taleb chamou esse lugar de “EXTREMISTÃO”.
Ele insulta quem não entende isso. Chama certos figurões da academia de “intelectuais idiotas”. É considerado arrogante, “um pé no saco”, desagradável, ofensivo, exibicionista. “Um asshole“, como alguém escreve na contracapa de seu livro mais recente, “mas um asshole que está sempre certo”, completa o depoimento.
Ficou rico apostando contra a mentalidade linear, “gaussiana”, do mundo das finanças, e sua riqueza vem se multiplicando a cada grande crise. Sua estratégia é perder pouco dinheiro dia após dia, até ganhar uma montanha de vez em quando. Ele ganha muito quando chega o “inesparado” que pega todos, menos ele. Esse “de vez em quando” deve ter acontecido umas três ou quatro vezes para ele nas últimas décadas; ficou multimilionário. A última montanha de dólares ele ganhou agora-o fundo que assessora lucrou 3600% em março de 2020, mês em que as finanças do mundo inteiro foram para o vinagre.
Ele tem outra habilidade: é bom na matemática da incerteza,a teoria da probabilidade avançada. Bom o suficiente para saber que as interconexões do mundo global levam a riscos crescentes em ritmo cada vez maior.
Estruturou sua vida pessoal em torno dessa ideia,segundo diz.
Abaixo um vídeo em que ele fala sobre a pandemia (no início, enquanto o repórter fala, o inglês é bem claro).
Mas comecemos do começo.
Nos anos 1980, antes da Internet, já se especulava que a revolução digital (então começando) produziria um grau de conectividade que geraria riscos com os quais não saberíamos lidar.
Riscos oriundos de uma incerteza “estrutural”, digamos , que existe em qualquer domínio hiper conectado. Riscos de eventos imprevisíveis, que -(pior ainda!)- não teremos jamais como prever, porque são “incomputáveis”, como se diz .Não depende de técnicas mais apuradas, ou de computadores poderosos. São incomputáveis.
Foi um mundo assim que tornou a pandemia possível, e o que virá depois dela ou será um mundo diferente ou poderá não ser mundo nenhum. Como viver num mundo assim?
Estamos em 1990.
Eu abandonara uma carreira de físico especializado em engenharia nuclear. Trabalhara anos na Alemanha avaliando riscos de terremotos e rupturas de tubulações que poderiam fazer núcleos de usinas nucleares derreterem ou lançar vapor radioativo na atmosfera (como uma panela de pressão que destampa). Usávamos modelos matemáticos para fazer previsões, mas ninguém acreditava realmente que pudessem ocorrer acidentes daquele tipo.
Em 1986 aconteceu Chernobyl, uma barbeiragem de engenharia (não um cisne negro) e a energia nuclear ficou sob suspeita no mundo todo. Eu abandonei a carreira e fui ser executivo numa empresa suficientemente maluca para contratar um físico que nada entendia de business- a AMIL Assistência Médica.
En passant, o acidente em Fukushima no Japão (2011) foi um Cisne Negro resultante da conjugação de fatores considerados “improváveis” (tsunami+ terremoto ao mesmo tempo!). Só que no extremistão fatores improváveis são o que há, nós é que não conseguimos saber deles com antecedência.
Minha experiência com modelagem de riscos em usinas nucleares, somada à incerteza que experimentava no mundo empresarial- onde é preciso tomar decisões toda hora sem informação completa- me levou a um fascínio crescente por esse tema.
O que fazer quando não se pode ter certeza? Análises custo-benefício não têm sentido se o custo de uma decisão pode ser “infinito” (a empresa pode quebrar , a usina explodir, o vírus tomar conta do planeta).
O tema do meu primeiro livro em 1996- “Em Busca da Empresa Quântica” era este: teríamos de aprender a viver num mundo povoado por riscos que não entenderíamos nem poderíamos controlar. Um mundo em que a “coisa certa” seria inacessível a nossos métodos normais de fazer ciência e de administrar organizações.
O livro fez sucesso e me deu coragem para ,anos depois, sair da Amil para me dedicar ao que faço até hoje.
Na época, a metáfora do Cisne Negro não existia. Foi criada mais adiante para ilustrar o fato de que, num mundo hiper conectado, precisaremos mudar práticas de negócios e normas sociais-o mesmo tema do meu “Em Busca…” lá atrás. Eu estava certo quanto a isso, mas errei no enfoque.
Tentei fazer uma analogia entre as incertezas do mundo das organizações e a incerteza mais “ilustre” que eu conhecia, que era a marca registrada da Física Quântica. Só que incerteza quântica não tem nada a ver com as incertezas do mundo real- aquelas com as quais estamos lidando hoje. A ideia que eu tentava construir era esta:
“..os físicos tiveram de aprender uma nova linguagem para lidar com uma lógica que não entendiam: a lógica do mundo infinitamente pequeno dos átomos. Quando eles tiveram acesso a esse mundo, viram que nele não valiam as noções da Física de Newton que era o paradigma da ciência até então. Do mesmo modo, eu sugeri, gestores e tomadores de decisão terão de aprender uma linguagem nova para lidar com a lógica do mundo hiper conectado que está emergindo”.
A nova lógica que eu identificava, pedia uma nova ciência, de inspiração mais biológica, mais próxima da lógica do mundo orgânico- era a “Ciência da Complexidade“. Seus contornos eram incipientes na época, mas eu estava acompanhando seu desenvolvimento e escrevi sobre aquilo no livro. Acabei vendo que “Empresa Quântica” não tinha sentido, a “Ciência da Complexidade” é que seria o novo paradigma científico para lidar com a incerteza que iria nos engolfar. Pus isso no livro.
O livro conta a história da construção da Física Quântica que ocorreu nas três primeiras décadas do século XX , em paralelo com o surgimento de grandes organizações empresariais – Coca Cola, Ford e GM- cuja história também conto lá. É interessante.
A Física Quântica foi inventada “em desespero” quando o que se tinha como a “maneira certa” de pensar o mundo físico caiu por terra.
Ninguém consegue explicá-la, só se sabe usá-la para produzir coisas úteis- “faz assim que dá certo, não me pergunte por que”.
No mundo quântico não há “forças” que produzem efeitos definidos; não há trajetórias nítidas de objetos, os objetos que moram lá não são como os do mudo macroscópico. Não há correspondência com o mundo gaussiano que conhecemos, onde há médias, desvios padrão, causas/efeitos e valores esperados para as coisas.
Ficou claro que existem realidades que não podemos ver ou intuir, mas que fazem uma diferença danada em nossas vidas. PS: pensava-se que não existiam Cisnes Negros porque nunca ninguém tinha visto um, mas bastou um só ser avistado para destruir essa crença.
O mundo quântico só é acessível por meio da matemática que puxa a realidade de lá, para dentro de nossas vidas. Poucos dos avanços tecnológicos que desfrutamos teriam sido possíveis sem a tradução do mundo quântico para o mundo concreto do nosso dia a dia (microchips, lasers,..).
Mas, ao mesmo tempo em que os físicos iam ficando mais humildes em relação ao que achavam que sabiam, os gestores e tomadores de decisão nas organizações se convenciam de que poderiam se inspirar na ciência que os cientistas já estavam deixando para trás.
Funcionou até que deixou de funcionar. Há 45 anos já era perceptível que chegaria a um limite. Chegou.
O mundo pós pandemia terá de ser outro mundo. A complexidade e os riscos associados a incerteza serão o que definirá o futuro de pessoas e empresas. A incerteza é a do EXTREMISTÃO- o lugar onde moram riscos silenciosos que vão se acumulando à medida que aumenta o emaranhado de conexões no planeta.
Hiper conexões levam a hiper surpresas.
Um mundo hiper conectado levará direto ao desconhecido do extremistão.
Complexidade crescente significa que há muito mais maneiras erradas do que maneiras certas para se fazer alguma coisa. Ou seja, haverá cada vez menos maneiras de se ficar vivo e mais maneiras de se estar morto.
Como lidar com isso? Com base em que as empresas farão “planejamento estratégico“? Como lidarão com o futuro? A saúde ficará como? O que será do hospital? De que tipo de líder precisamos? Como deverá ser a educação para ter sucesso nesse mundo? O que significará “sucesso” nele? Não vale dizer que “nada pode ser feito quanto ao extremistão“. Pode sim.