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Será que a assistência médica tem remédio?

Tem se o setor passar a operar como um mercado de verdade. Para isso, a ANS tem que reinterpretar sua missão. Do jeito que atua hoje ela gera mais calor do que luz.

É esquisito. A medicina avança, mas a assistência médica não. No mundo todo os custos sobem e a satisfação do usuário cai.Fiquemos no setor privado, responsável pelo atendimento a uns 40 milhões de brasileiros.

-Os economistas nos ensinam que quando um mercado funciona direito a competição faz os preços caírem e a qualidade melhorar. Exemplo: há alguns anos um DVD player custava uns 1000 dólares, hoje você encontra um (melhor) por pouco mais de 50 dólares. Chamam isso de “efeito Wal Mart”: grandes varejistas usam seu poder de barganha para forçar os fornecedores a entregar mais por menos e repassam parte da economia para o consumidor. Não existe efeito Wal Mart em saúde porque esse mercado funciona “torto”. A “culpa” não é de ninguém em particular, é do emaranhado de conflitos de interesse e incentivos errados que produzem um acúmulo enorme de anomalias perversas no setor. Se quisesse mesmo proteger o consumidor, a ANS e órgãos governamentais (incluindo o ministério da saúde) deveriam atuar como indutores do funcionamento correto do mercado, não ficar arbitrando preços e apontando culpados à execração pública.

-Veja só: o que faz o preço do DVD player cair é um consumidor que paga por ele do seu próprio bolso. Por isso ele se informa, compara e busca alternativas. A competição para conquistar esse comprador derruba o preço. Como em saúde quem paga o serviço na ponta não é quem o consome (é seu plano de saúde, ou o governo, ou sua empresa) – não há motivação para que o consumidor seja criterioso na escolha. A demanda dispara e os custos aumentam até pelo volume do uso. Todos querem “o melhor” e exigem cada vez mais esse “melhor”. Só que não há critério racional para identificar o tal “melhor” pois não se mede performance dos fornecedores de assistência médica. Como descobrir quem realiza melhor e mais barato o procedimento médico que eu necessito para o meu estado de saúde particular? Quais os níveis de qualidade do hospital X? Qual o índice de sucesso do tratamento da condição Y segundo a linha terapêutica Z? O que é, afinal, qualidade em medicina e quem entrega essa qualidade? Essa informação não existe e deveria existir. É um escândalo que não exista!Induz ineficiência e desperdício. Gera calor, não luz.

-Como as operadoras (planos de saúde/seguradoras) pagam as despesas, mas não têm como induzir um uso racional do sistema, elas tendem a buscar o risco mais favorável aceitando apenas clientes que potencialmente irão gerar menos custos e/ou limitando o atendimento de várias formas. A nova lei dos planos de saúde diminuiu bastante seu poder para agir assim, mas acabou ampliando a distorção porque os outros agentes continuaram a se comportar como antes. A justiça tende a dar sempre ganho de causa a clientes (mesmo sem cobertura contratual) contra as operadoras. O litígio aumenta ainda mais o custo. Segundo os especialistas, outro sinal de “mercado torto” é esse: contratos violados e direito de propriedade (property rights) ignorado. É o análogo à pirataria que flagela outros setores da economia e que todo mundo condena, só que no mercado de saúde a pirataria é protegida pela justiça. A justificativa? Você sabe: “proteger o usuário”. Resultado: mais calor e nem uma frestinha de luz.

-Ao regular só uma ponta do sistema (os planos de saúde), a competição ficou ainda mais distante do que deveria ser se o mercado fosse “saudável”. O cliente de plano individual está “protegido” pela ANS que impede o repasse de custos para eles além de certos limites. As empresas que contratam planos de saúde para seus funcionários têm poder de barganha para rechaçar reajustes grandes.Sem alternativas, as operadoras tentam empurrar os custos para os prestadores de serviço (médicos/hospitais..). Esses, por sua vez, se unem, não para garantir o melhor produto ao melhor preço (como o Wal Mart faz), mas para empurrar o custo de volta às operadoras. É um jogo de soma zero. O sistema não cria valor, destrói. Só gera calor e faz a escuridão aumentar.

-O establishment médico também impede que os preços caiam. Inovações, em geral, só se entranham na prática médica com velocidade de lesma. Nos EUA o tempo médio para que uma prática nova (já aprovada nos testes) torne-se padrão é de 17 anos. Dezessete anos, minha gente! Hospitais são péssimos usuários de tecnologia na gestão de seus processos, e essa é outra razão pela qual o custo não cai. Na era da Internet, tente comunicar-se com seu médico por e-mail. Vamos lá, tente! Pranchetas com anotações à mão penduradas nas camas dos pacientes; receitas ilegíveis em pedaços de papel são levadas pessoalmente à farmácia do hospital onde seu conteúdo é “adivinhado” por um atendente sem treinamento. Enfermeiras que não entendem a letra do médico erram na dosagem dos medicamentos… Estimativas de mortes (nos EUA) devido a essas barbaridades variam de 45 mil a 90 mil por ano segundo várias fontes.Imagine o que deve ocorrer por aqui. Sisteminha “abafado”, não? Tem mais.

-Em meu último livro – A CIÊNCIA DA GESTÃO – mostrei (seguindo as idéias do professor Clayton Christensen, de Harvard) que uma fonte primária do aumento de bem estar e desenvolvimento tem sido o que chamei de inovações “disruptivas”: processos e tecnologias mais simples/baratos, ao alcance de mais pessoas, sem intermediação de especialistas. A fotografia e o automóvel como produtos de massa, o computador pessoal, as copiadoras de mesa, o ensino a distância, são exemplos. Em medicina, inovações disruptivas nunca têm “boa vida”. A angioplastia demorou muito para deslocar a cirurgia de peito aberto, em parte devido à resistência dos cirurgiões que temiam perder poder e dinheiro para os “cardiologistas comuns”. Enfermeiras são proibidas de diagnosticar e tratar mesmo as condições de saúde mais simples (dor de ouvido ou “garganta inflamada” numa criança, por exemplo). Auto-aplicação de insulina por parte de diabéticos, testes auto-aplicados de gravidez, aparelhos de raios X portáteis para uso em consultórios, exames oftalmológicos simples que poderiam ser também auto-aplicados, demoram, demoram, demoram, para se implantarem. O custo sobe mais. A resistência ocorre por causa da “regulação” interna da prática médica (aquela mesma dos cirurgiões cardíacos versus cardiologistas) o que também impede o funcionamento sadio do mercado.Oferecem-se aparelhos e procedimentos cada vez mais caros e sofisticados, mas, em geral, não há evidência da necessidade real disso. É que os fabricantes desses equipamentos-que têm enorme poder de barganha sobre os hospitais – conseguiram associar “qualidade em medicina” a “aparelhos sofisticados”. O usuário é induzido a achar que qualidade é isso e quer usar (“é o plano de saúde que paga, ora!”). É a oferta – e não a necessidade – que induz a procura. O custo sobe mais. Mais calor.Onde está a saída desse túnel escuro e abafado?

-Para fazer aparecer um “efeito Wal Mart” em saúde incentivando o surgimento de um mercado de verdade, as seguintes estratégias deveriam ser patrocinadas ativamente:

1-Medir a qualidade da prática médica e disseminar amplamente essa informação. As instituições médicas teriam seus indicadores de performance divulgados até o nível em que isso fosse possível (uma espécie de “provão” na área da saúde). A divulgação desse ranking de qualidade induzirá eficiência. Prestadores de serviço médico terão interesse em aprimorar suas práticas porque a competição para prestar o melhor serviço aumentará.

2-Incentivar variantes de co-pagamento por parte do usuário final como forma de motivá-lo a exigir mais valor. Ele só fará isso se sentir que algo está saindo do seu bolso. Enquanto ele achar que é alguém – que não ele – que paga, nada acontecerá.
(PS: há quem ache que um processo análogo ocorrerá com o automóvel. As pessoas terão de pagar para dirigir toda vez que tirarem seus carros da garagem se não, a poluição e os engarrafamentos não diminuirão. Ninguém se responsabiliza pelos efeitos de sua ação individual sobre a coletividade a não ser que pague por essa ação).
Essa é uma situação comum na vida social. Escrevi sobre isso no artigo Tudo está em jogo [que saiu na “Superinteressante”].

3-Incentivar a inovação “disruptiva” em medicina nos moldes que citei acima. Isso diminuiria a escandalosa demora na difusão da inovação nessa área e reduziria custos. Para isso, a ANS vai ter de, digamos, “abrir um debate” com a classe médica sobre suas práticas. Não será nada fácil, mas tem ser feito se é que ela quer de fato cumprir sua missão (veja a missão da ANS em http://www.ans.gov.br/portal/site/aans/missao.asp)

4-Incentivar a educação do usuário quanto à sua própria condição de saúde. O usuário de medicina ainda é tipicamente um tolo desinformado, excessivamente respeitoso da autoridade do médico.Essa atitude custa caro. Um consumidor educado/informado pode e deve participar da gestão de sua saúde. A autoridade médica inquestionável é das últimas instâncias de autoridade absoluta que ainda sobrevive na sociedade, mas há fortíssimos indícios de que esse cenário está mudando. Seria do interesse da competição sadia que isso ocorresse o mais rápido possível. A era do cliente tem que chegar à medicina.

-Os planos de saúde têm sido apresentados como os únicos vilões nesse enredo, mas isso é errado e injusto: eles são mero reflexo do desequilíbrio do sistema, não a causa. O vilão é o sistema. A ANS deve atuar nele inteiro, não numa ponta só. Se medidas como as que sugeri forem adotadas, as operadoras vão refleti-las em sua forma de atuar, pois terão de competir por valor (não “por custo”). Quem tiver melhor gestão, entregando mais valor na ponta do consumo médico vai se firmar, os demais vão desaparecer. O sistema funcionará como um mercado de verdade e estaremos, enfim, gerando luz, não apenas calor como hoje.

* Clemente Nobrega – Setembro/2004

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