O oráculo Drucker
Em 1996, numa entrevista à revista Wired – a bíblia da sofisticada geração tecnoconectada americana – Peter Drucker, então com 86 anos, antes que lhe fizessem qualquer pergunta, disparou:
Drucker:
Vocês da Wired aceitariam, por favor, o fato de que a indústria de computadores, como indústria, não ganhou um tostão até hoje?
Wired:
Não ganhou um tostão??!!
Drucker:
Houve um tempo em que a IBM teve lucros maravilhosos. Ganhou bastante dinheiro, mas não mais do que o resto da indústria perdeu… Intel e Microsoft ganham, ok, mas olhe para todo esse pessoal que está perdendo dinheiro pelo mundo afora. Tenho minhas dúvidas se a indústria já atingiu sequer o break-even.
E prossegue explicando que isso não é algo sem precedentes na história. Dá uma aula para a rapaziada da Wired, falando da primeira indústria multinacional da história (bancos), que começou no século XV com os Medici e os Fluggers, e de como, apesar de certos indivíduos terem acumulado fortunas incríveis, a indústria, como um todo, nunca ganhou um tostão. (Dá para “ver” a cara dos entrevistadores). Peter Drucker é assim. Olha o mundo das empresas sempre sob a perspectiva histórica. É difícil não prestar atenção ao que o velho diz. Mesmo quando não parece relevante à primeira vista, sempre se fica intrigado. Freqüentemente, ao lê-lo, me pego pensando: “não entendo por que isso pode ser importante, mas como é Drucker, deve haver algo bom aí, deixa eu reler”. A cultura enciclopédica dele humilha a maior parte de nós.
É esse mesmo Drucker provocador, descobridor de ângulos novos para interpretar velhos fenômenos do mundo das empresas, que encontramos, três anos depois daquela entrevista, em seu novo livro: “Desafios Gerenciais para o Século XXI” – lançado no Brasil pela Pioneira simultaneamente com o lançamento original nos EUA.
É um livro sobre o futuro, apesar do que ele disse noutro trecho da mesma entrevista:
Wired:
Drucker:
“Desafios Gerenciais” é uma coletânea retrabalhada de idéias que têm aparecido em várias publicações. Aqui, encontramos o inventor da administração de empresas (denominação que ele não rejeita), falando sempre sobre os fundamentos da disciplina que criou. Nas entrelinhas, a mensagem é clara: o que é realmente sofisticado e relevante em business, só se capta pelo entendimento de um processo cultural mais amplo. Ninguém nesse ramo chega aos pés de Drucker em competência para analisar isso.
Às vezes, ele é árido, seco mesmo. Não espere dele nada semelhante aos modismos digestivos dos gurus tradicionais. Peter Drucker é um scholar que só trata de grandes questões.
Seu novo livro começa enumerando alguns pressupostos sobre a realidade empresarial que tomamos como óbvios e, depois, derruba-os um a um.
É um prazer encontrar o velho mestre lembrando-nos a primazia do conceito de valor, e frisando que “o que é valor para o cliente é sempre algo muito diferente do que é valor, ou qualidade, para o fornecedor “. Se há uma idéia central no livro, é esta: a empresa do século XXI é sobre o fora, não sobre o dentro, como nos acostumamos a pensar. É sutil e profundo, pois implica uma enorme mudança de perspectiva em relação ao que achamos que sabemos.
O foco vai se deslocando para o contexto no qual a empresa está, sai do interior da organização, que sempre foi, e continua sendo, a especialidade do administrador…
A empresa, ele nos diz, não será mais vinculada a business (negócios) mas a um processo econômico mais amplo. Tem de haver um entendimento muito mais geral do processo no qual ela está inserida.
Empresa para ele é empreendimento: inclui, além do que tradicionalmente associamos a negócios, todo tipo de organização – o hospital, o laboratório de pesquisas, a universidade. Drucker alarga o âmbito de atuação disso que chamamos empresa para tudo o que afeta seu desempenho de alguma forma, e com isso acaba entrando, é claro, na evolução do próprio tecido social.
Falar em fundamento empresarial é falar em estratégia, e ele trata longamente dos fatores que estarão ao fundo de nossas decisões estratégicas no próximo século, passando por redefinições de muitos pressupostos que nenhum de nós ousaria colocar em questão.
Liderança, por exemplo. Ele abre assim o capítulo que trata do tema: “Não se pode gerenciar mudanças, apenas estar a sua frente” – o que me faz pensar em milhões de cursos e seminários que se propõem justamente a ensinar a “gerenciar mudança” – de que será que tratam?
Depois, começa a falar do paradoxo central do management – a corda bamba entre a mudança (que é só o que há), e a necessidade de continuidade, que é o pressuposto de qualquer empresa.
Drucker sai sempre do óbvio. Exige que o leitor pense. Não escreve simplesmente para “inspirar”. Em seus livros não há aquelas frases que decoramos para depois impressionar nossos pares em reuniões.
O melhor do livro, para mim, é sua abordagem do que chama de desafio da informação. Diz que a verdadeira revolução da informação ainda nem começou. Até agora, o computador e a tecnologia da informação dele originada, não tiveram impacto praticamente nenhum sobre decisões. Construir ou não um edifício, uma escola, um hospital ou uma prisão, por exemplo. Para as tarefas da alta gerência, a tecnologia da informação foi, até agora, uma produtora de dados, em vez de uma produtora de informação. Tecnologia da informação não levou a novas e diferentes perguntas estratégicas.
A chave para Drucker não são custos, é valor. É criação de riquezas, não tarefas operacionais e controles nos quais, até agora, é só onde sentimos o impacto da TI (Tecnologia da Informação). Sob essa perspectiva, entende-se bem a provocação dele aos entrevistadores da Wired (compare com a matéria de Michael Porter em Exame de 10/1999: “Sem Mágica”. Ambos focam o conceito maior de estratégia como o centro da coisa toda e não, repito, excelência operacional, que é para onde tendemos a correr toda vez que nos vemos em crise de imaginação, quer dizer, toda hora). Drucker, como Porter, sabe que o futuro é de quem criá-lo estrategicamente, isto é: fazendo boas apostas, ofertas de valor que o cliente aceite, entendendo em que essa ou aquela atividade agrega valor ao processo global da empresa; fazendo escolhas; arriscando.
“Computador” é decepcionante nesse ponto.
TI é, hoje, muito mais T do que I, diz ele, e no futuro isso vai mudar… Quando tivermos informações que nos possibilitem agir estrategicamente – agregando valor – de uma forma menos primária do que podemos fazer hoje; quando a informação produzir organização que nos permita criar novos horizontes, aí teremos a informação como princípio criador, não como tecnologia. Drucker deve saber (é smart demais para não saber) que essa idéia de informação como matéria-prima do ato criador é dos temas mais quentes em ciência neste final de século. Informação é o que organiza, distingue.
Sua maneira de tratar a idéia de informação lembra um cientista, não um businessman: para ele, informação é algo fundamental, como matéria ou energia são para o físico; algo que dá forma e organiza o caótico e o incerto. Certamente, ele sabe que informação, vista assim, muito além do limitado conceito de tecnologia de informação, faz parte de uma “nova” fronteira de pesquisa avançada em ciência.
Na natureza, o que dá forma a um organismo é a organização produzida pela informação. Na empresa também. Em ambos os domínios, o estado natural das coisas é a desorganização. Tudo tende naturalmente à desordem, se deixado por sua própria conta. Qualquer coisa organizada é, de certa forma, anti-natural.
Management existe exatamente para isso: interferir para reorganizar continuamente, para trazer de volta à ordem. Organização não ocorre de graça.
É nesse sentido que Drucker fala que, na empresa, não temos informação, só dados; que não temos métodos sistemáticos e disciplinados para obter informação sobre o exterior da organização. A revolução na qual ele acredita tem a ver com dados que se transformam em organização, via informação. Ele usa o termo informação no sentido do DNA – o código para criar organização, trazendo o fora para dentro.
O velho parece continuar divertindo-se com nossa ignorância ao dar outra lição, mostrando que isso que chamamos de revolução da informação, é a quarta na história do mundo, depois da escrita, do livro e da impressão. Fulmina a crença usual de que a atual “revolução” não tem precedentes na redução do custo da informação e em sua disseminação. Isso, para ele, simplesmente não é verdade – as reduções em custos na terceira revolução da informação foram, no mínimo, tão grandes quanto as da atual. Idem para sua velocidade, alcance e disseminação.
Depois disso, entra no argumento central: a importância – chave da informação como, digamos, “conhecimento comprimido” ou ordenado – colocado em formatos que alavanquem a inovação. Para ele, é nos veículos da palavra impressa que está a raiz da coisa. Editoras cresceram mais rápido do que a IBM nas décadas de 60 e 70, e também mais que a Microsoft na de 80. Mais rápido ainda que isso, tem sido o crescimento de revistas segmentadas – tanto, por exemplo, para um encanador que quer saber do que ocorre no seu mundo lá fora, como para um médico. A noção central continua sendo incorporar o fora.
Drucker vê nisso a emergência de um fato novo: o mercado para informação sobre o fora (bem como o suprimento) existe, mas está desorganizado e, em pouco tempo, umas duas décadas talvez, os dois vão convergir. Essa será a verdadeira revolução da informação.
Quem vai conduzi-la? Contadores e editores, responde Drucker.
Contadores?
É o surpreendente Drucker de novo que nos explica como, no momento em que a informação geradora de organização estiver disponível, teremos, como já temos em alguns casos isolados, uma contabilidade baseada em atividades – análises de valor de processos integrados, não análise de custos de tarefas específicas e separadas. Saberemos identificar, através de novas ferramentas, quais atividades agregam valor e quanto. Saberemos o custo de não fazer, não apenas o de fazer. Saberemos quanto a empresa vale como processo, não mais quanto custa desempenhar tarefas específicas. Quer dizer, a contabilidade baseada na idéia de informação, a la Drucker, vai capturar a noção de valor – o fora da empresa – coisa que não fazemos hoje.
Por trás de tudo que Drucker escreve há uma exortação implícita: entenda os fundamentos. Entenda o processo que lhe permite agregar valor. Entenda de fato o que é lucro. Entenda a natureza íntima do que é liderar, gerir o conhecimento, gerir a si próprio. Entenda as nuances da história.
Há mais. Há o novo perfil do gerente do conhecimento que tem de ser centrado na tarefa e que saberá que a ele é que caberá definir a tarefa relevante a executar para que possa contribuir para a organização. Assim é que vai ser definida a produtividade do trabalhador do conhecimento. Há a visão sistêmica do mundo da empresa e do trabalho. Há a responsabilidade pessoal – o indivíduo que se auto-examina e pergunta: quais são minhas forças? Como posso contribuir? Quem – ou o que – sou eu como profissional? Quais são meus valores? Você como gerente de si mesmo.
Ler Drucker nem sempre é “agradável”. Seu estilo não é digestivo. Não há sumários executivos, não há “dez coisas para começar a fazer amanhã”, não há gerentes entrando em transe ou caminhando em braseiros, não há choradeira ou emocionalismos baratos.
Nada a não ser o velho Peter Drucker. Sempre uma festa para quem gosta de idéias provocantes, e não óbvias.
Oitenta e nove anos e cada vez melhor
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*Artigo publicado na revista Exame de 11/1999.
“Não. Eu não especulo sobre o futuro. Não é dado a mortais ver o futuro. Tudo o que se pode fazer é analisar o presente… aí pode-se aplicar as lições da história, e chegar a alguns possíveis cenários… O que digo é: aqui estão as realidades de hoje e suas implicações para os próximos vinte anos; e aqui estão as probabilidades baseadas nas lições da história. Tudo o mais é besteira…” “A Wired é uma revista sobre o futuro. O senhor pode especular um pouco sobre a sociedade do século XXI?”