O Profeta da Inovação
Uma entrevista póstuma com o economista austríaco Joseph Schumpeter mostra por que as idéias do autor do conceito de destruição criativa estão mais vivas do que nunca.
Hoje, quando o assunto é geração de riqueza e inovação, só dá ele. Uma recente biografia sua* mereceu resenhas nas principais publicações do mundo. Procure saber sobre os debates nos fóruns internacionais. Pesquise o que os think tanks e formuladores de políticas estão dizendo. Vá até Davos. Joseph Schumpeter (1883-1950) está em todas. China e Índia como potências emergentes? Ele teria algo a declarar. O que o Brasil tem de fazer para que seu atual surto de prosperidade não seja apenas um surto? Schumpeter responderia. Suas idéias são uma inesgotável fonte de inspiração prática para pessoas, empresas e países. O cara corrigiu Einstein, sabia? Vou contar a você.
Joseph Schumpeter
(1883-1950)
Vaidoso e excêntrico, adorado pelos alunos, ele proclamava que a força motriz do progresso era a inovação e seus agentes, os empreendedores.
Certos temas nunca saem da agenda. Por exemplo: “Por que alguns países são ricos, outros pobres?” Até Einstein andou dando seus pitacos nessas coisas. Em 1949, num artigo intitulado Por Que o Socialismo? (corram ao Google), ele escreveu: “A anarquia econômica da sociedade capitalista (..) é, em minha opinião, a verdadeira fonte do mal”. Einstein achava que os mercados geram crise, instabilidade e empobrecimento. A única maneira de eliminar esses males, segundo ele, seria estabelecer o socialismo – os meios de produção seriam propriedade da sociedade. Com isso, ele pensava, se garantiria o sustento de todos os homens, mulheres e crianças. Cada um segundo suas possibilidades. A cada um de acordo com suas necessidades.
Bonito, mas errado. Na época, não era evidente que um sonho aparentemente bacana era, no fundo, um mau sonho (isso ficaria claro décadas depois). Alguns, porém, já percebiam. E não eram os gênios da ciência, não. Schumpeter já percebia. Sua resposta para a pergunta que não se cala – “De onde vem a prosperidade de quem é próspero?” – foi o oposto exato da de Einstein, e era ele quem estava certo.
Baixinho, careca, gordinho, ele se achava o máximo. Mulherengo, falastrão, adorava contar vantagem. Vaidosíssimo, demorava horas para se vestir para jantar (em casa). Excêntrico, ia às reuniões da Universidade Harvard – onde foi professor – de botas para montar. Era adorado por seus alunos “de ambos os sexos”, como diz Thomas McCraw (não sei se entendi bem esse “ambos os sexos”, mas deixa pra lá). Dizia aos amigos que tinha três objetivos na vida: ser o maior amante da Europa, o maior cavaleiro do mundo e o maior pensador econômico de todos os tempos. Antes de morrer declarou que só não estava satisfeito com suas performances como cavaleiro. Cheio de marra, esse Schumpeter. Lembra aquele outro baixinho goleador que temos por aqui. Seus esportes eram a equitação e a esgrima, mas fez pelo menos um gol de placa. Um golaço que mudou tudo o que se pensava no jogo que nos interessa: como ficar rico.
Schumpeter nasceu na Áustria e viveu em sete países diferentes, o que certamente contribuiu para a visão única que construiu sobre o que gera a riqueza das nações. Seus dois maiores insights foram os seguintes:
1- A força motriz do progresso econômico é a inovação. Riqueza, prosperidade, desenvolvimento vêm da inovação e só dela. Para Schumpeter, inovação tem um significado preciso: é a substituição de formas antigas por formas novas de produzir e consumir. Produtos novos, processos novos, modelos de negócios novos. Essa substituição é permanente, e ele a chamou de “destruição criativa” – expressão que todo mundo usa hoje. É esse processo que faz o sistema capitalista ser o melhor que existe para gerar riqueza e produzir crescimento econômico. O que Einstein chamou de “anarquia do sistema capitalista” é exatamente sua força, segundo Schumpeter. Sem “destruição criativa” não há riqueza.
2- Os agentes da inovação são os empreendedores. Empreendedores são indivíduos (são pessoas, não instituições, não governos, não partidos) movidos “pelo sonho e pela vontade de fundar um reino particular”. Por causa da “destruição criativa”, homens de negócios prósperos pisam num terreno que está permanentemente “se esfarelando embaixo de seus pés”. A instabilidade, o não equilíbrio, a desigualdade e a turbulência são inevitáveis – o preço a pagar pelo progresso. Ditos assim, esses dois pilares do pensamento de Schumpeter – inovação e empreendedorismo – não parecem muito sexy, mas deixe-me elaborá-los um pouco.
Uma conversa com Joseph Schumpeter
Imaginei uma conversa com ele. Eu, no papel de entrevistador, tentando adivinhar as respostas que ele daria a perguntas de três tipos de pessoas: o gestor de uma empresa, um jovem que quer empreender e o formulador de políticas de desenvolvimento de um país.
Professor Schumpeter, há 25 anos apareceu um livro que marcou época, In Search of Excellence, de Tom Peters e Bob Waterman (no Brasil, Vencendo a Crise). Esse livro procurava identificar os princípios da excelência empresarial sustentável, digamos. Logo em seguida, porém…
SCHUMPETER (me interrompendo): Não me chame de professor. Sou um acadêmico, não um técnico de futebol. Professores são o Dunga e o Wanderley Luxemburgo. Não sei o que você iria perguntar, mas sei a resposta. Eu nunca escreveria um livro para identificar empresas sustentavelmente excelentes porque isso não existe. Se Tom Peters tivesse me consultado, não teria perdido seu tempo. Toda vantagem competitiva é temporária. A maior parte das empresas que Peters e Waterman identificaram como excelentes em 1982 foram para o buraco nos anos seguintes, como eu já sabia que iria acontecer. Eu também não escreveria livros tipo Feitas para Durar, pois companhias não são feitas para durar, mas para ser substituídas por outras empresas, que serão substituídas por outras e assim por diante. Essa é a essência do capitalismo. Essa fermentação é que gera riqueza.
Quer dizer que, quando alguém cria uma empresa, já pode ter certeza de que ela vai morrer um dia, por mais que seja competente e talentoso?
SCHUMPETER: Isso mesmo. A permanência de empresas é uma ilusão. O que quer que seja construído será destruído por um novo produto, um novo processo, uma nova organização, uma nova estratégia. A competição capitalista engendra e acalenta a destruição em seu ventre. Mas isso não é impedimento para empreendedores de verdade, pois eles são animais raros. Têm uma fé inabalável na possibilidade de fazer diferença. Veja um exemplo: em 1930, o varejo americano de alimentos era dominado por cadeias de armazéns – algo que não existe mais hoje. Naquele ano, um sujeito chamado Michael Cullen escreveu ao presidente da Kroger – a segunda maior empresa do ramo – propondo a criação de um novo tipo de “armazém” que considerava revolucionário, e pedindo uma reunião para explicar seu conceito. Ele queria falar daquilo que mais tarde seria conhecido como supermercado. Sua idéia era que seria possível baixar o preço das mercadorias, se fosse introduzida uma mudança radical: reduzir drasticamente o trabalho dos atendentes no balcão. Antes do supermercado (o conceito que Cullen estava propondo), o cliente não comprava, as coisas eram vendidas a ele. Os preços não eram colocados nos produtos. Os produtos ficavam armazenados no fundo das lojas, acessíveis apenas ao atendente. O atendente do balcão é que controlava a venda. Nos supermercados, ao contrário, os clientes ficariam por conta própria. Como os preços eram marcados nas mercadorias e os produtos ficavam visíveis nas prateleiras, os consumidores podiam fazer as próprias escolhas, sem pressão ou sem ter de admitir que não tinham dinheiro para comprar as marcas mais caras.
Empreendedorismo requer apetite para o risco. É a excitação diante de uma possibilidade não evidente história.
Demorou, mas adeus cadeias de armazéns. Conceitos de sucesso têm sucesso até o momento em que aparece um cara com uma idéia nova e faz o que é preciso para que seu conceito seja adotado. O que atrai o empreendedor é a perspectiva de ficar rico. (Esse cara não é o CEO. CEOs, em geral, não são empreendedores.) Empreendedores são um tipo psicológico exclusivo. A única maneira de uma empresa permanecer por longo tempo é destruindo-se a si mesma antes que outro o faça. Só permanece o que muda. Jack Welch fez isso o tempo todo na GE. A Johnson& Johnson faz. A Microsoft tem feito, mas será que no ritmo adequado? (Olha o Google aí, Bill Gates!) A Xerox não fez isso e veja como está hoje em comparação ao que já foi. Por falar em GE, em maio de 2007 ela vendeu sua unidade de plásticos – uma das jóias mais reluzentes de sua coroa. A GE vem tendo receitas crescentes e lucros excelentes, mas não excita os investidores, e suas ações estão mal. Por quê? Porque ações só sobem quando há expectativa de que a empresa irá melhor amanhã do que está indo hoje. A GE está “apenas” mantendo o legado de Jack Welch. Está fazendo tudo certo, mas não está gerando dinheiro novo (na expectativa do mercado). Especialistas já estão dizendo que ela vai ter de se dividir em vários negócios independentes e focados. Suas peças separadas valeriam mais do que juntas. Que coisa, hein? Para permanecer, a GE teria de se destruir. Para mim, faz sentido. Eu falei disso na década de 40.Dei até um nome à coisa: “destruição criativa”.
O senhor diz que o empreendedor é o motor da inovação, e, portanto, do processo de geração de riqueza. Então, todo mundo deve querer ser empreendedor?
SCHUMPETER: Não existe isso de todo mundo ser empreendedor, mas é preciso que se incentive o maior número de pessoas a empreender. Empreendedorismo é apetite para o risco. É excitação diante de uma possibilidade não evidente para mais ninguém (lembre-se de Michael Cullen). A média das pessoas é muito mais inclinada a garantir o status quo do que a arriscar o novo. Não basta ser simplesmente criativo – o sujeito que vende sorvete na praia e se dá bem porque desenvolve relacionamentos um a um com seus clientes é empreendedor, mas não é schumpeteriano. O meu empreendedor é o vendedor de sorvete que não se satisfez com o pequeno sucesso, e partiu para uma fábrica de sorvete que usa novas tecnologias e novas matérias-primas, que exporta, que introduz novos formatos de distribuição, que inventa arranjos novos e diversifica.Ele busca sucessos grandes. Esse muda o mundo, porque só cresceu por aceitar correr riscos que a média das pessoas, em sua situação, não estaria disposta a correr. É claro que, para que o empreendedor schumpeteriano apareça, é preciso que se incentive a multidão de pequenos. É preciso facilitar o erro,entende?Uma das razões pelas quais na Europa não existe um Vale do Silício, com sua explosiva energia empreendedora, é que na Europa as leis de falência são muito duras e difíceis. Na Europa, quebrar é trabalhoso. No Vale do Silício é fácil quebrar, o que é ótimo para a destruição criativa. No Japão, empresas como a Sony tentam embutir a inovação em suas estruturas, atraindo gente boa para trabalhar lá. No Vale do Silício, os empregados mais talentosos de uma empresa equivalente à Sony pediriam demissão, pegariam dinheiro emprestado e criariam as próprias empresas para desenvolver um produto matador, baseado em alguma nova tecnologia. Correriam o risco de quebrar e perder tudo. Risco que, em média, seus colegas japoneses não estão dispostos a correr. Há, proporcionalmente, mais empreendedores “quebrados” nos EUA do que no Japão ou na Europa, mas há mais inovadores schumpeterianos também.
Será que entendi? O senhor está dizendo que as sociedades produzem alguns indivíduos dispostos a correr riscos maiores que a média, ante a perspectiva de conseguir lucros maiores também. O senhor introduziu uma dimensão humana na equação econômica. Quando a gente estuda economia, ouve falar de preços estabelecidos pela lei da oferta e da procura, agentes sem rosto, mercados de commodities, tudo impessoal, homogêneo. Tudo “média”. Sua visão valoriza um tipo que diz: “Não é tudo igual, não, eu sou diferente”. Sou diferente porque tenho um produto muito confiável a um preço que você pode pagar (o Ford do início do século 20), ou porque ofereço o mesmo que outros oferecem por preço menor (Toyota no início do just in time), ou porque inventei um conceito original que lhe oferece mais valor (Wal-Mart, McDonalds, Dell, South West Airlines, Cirque du Soleil).
SCHUMPETER: Você entendeu, sim. Basta que não se limite a inventividade. Não precisa nem incentivar, basta não atrapalhar, pois em qualquer população, de qualquer país, de qualquer lugar, de qualquer condição econômica, se não houver empecilhos, algumas pessoas vão empreender. Em Bangladesh há gente assim. No interior da África também. Nas favelas brasileiras há empreendedores. Em Ruanda há. São essas pessoas que fazem a riqueza do país crescer à medida que elas próprias (correndo riscos) crescem.
O que os governos podem fazer para colocar essa sua idéia de geração de riqueza em marcha?
SCHUMPETER: O papel dos governos – dos policy makers – é criar as condições para o espírito empreendedor emergir. Cuba só vai crescer quando criar as condições para que o espírito empreendedor dos cubanos se manifeste. Se criar essas condições, pode estar certo de que ele vai emergir. Na China está emergindo. É por isso que todo mundo fala de mim hoje. Enquanto o Estado chinês não “liberou” a propriedade privada – ter coisas, poder vender sua produção de alimentos, poder sonhar em “ficar rico” correndo riscos – nada rolava. O sonho comunista não dá certo porque não permite a emergência do empreendedor. A igualdade socialista é mediocrizante. Sem risco (como no comunismo) é tudo igual e tudo medíocre. O ambiente certo para o espírito empreendedor é criado pela “regra da lei” – the rule of law -, como se diz: o respeito aos contratos, o direito à propriedade, a transparência, as patentes, a competição livre. Um sistema jurídico acima de qualquer suspeita.
E o Brasil? Como o senhor vê nosso processo de desenvolvimento? Vamos ficar ricos mesmo?
SCHUMPETER: Para isso acontecer, o governo deveria ir mais fundo nas reformas que têm de ser feitas para que o “espírito animal” aflore para valer, e o empreendedor adormecido perceba que vale a pena correr risco no país. O sistema político de vocês tem de ser reformado, o sistema jurídico idem, o previdenciário e o tributário também. O mercado de trabalho é protegido demais. Há uma nostalgia contraproducente pelas estatais do passado. Ainda há um viés antiprivatização que é ruim. Há um anseio infantil pelo Estado protetor. O ambiente certo é o que incentiva a destruição criativa, não a proteção do Estado, não o emprego para a vida toda, não a aposentadoria aos 40 anos. Lembre-se, o empreendedor schumpeteriano é ambicioso, mas não é burro. Ele não arrisca em ambientes em que o preço de sua vitória é proibitivo. Há outros perigos também. Corrupção é um deles, e dos grandes. Em seu país há Zuleidos demais, Lalaus demais, entende? A regra da lei não é transparente. A vulnerabilidade do Brasil é essa. Não há país rico sem isso. Nem um único sequer. O Brasil está atrasado. É só isso que trava o desenvolvimento de vocês. O resto, com o tempo, o empreendedor faz.
* Prophet of Innovation: Joseph Schumpeter and Creative Destruction, de Thomas K. McCraw, Harvard University Press, 2007
Artigo publicado na Revista Época Negócios – Nº 5 – Julho 2007 – P. 142-148.
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